Segunda-Feira,
24 de Janeiro de 2005, 11:32
Santos
terá simulador sócio-ambiental
Da
Reportagem
O estuário de Santos, considerado um dos mais importantes
ecossistemas do Brasil, será palco ao longo dos próximos três anos de um
projeto internacional, envolvendo pesquisadores de cinco países e uma verba da
ordem de R$ 5 milhões.
Ao final dos trabalhos, a região terá à sua disposição um sofisticado simulador
virtual, um programa de computador desenvolvido por pesquisadores europeus, que
será 'alimentado' com milhares de dados químicos, físicos, biológicos, sociais
e econômicos da região estuarina santista.
Os cenários gerados por esse software permitirão que empresários,
administradores públicos, cientistas, lideranças ambientais e comunitárias
possam planejar o futuro da Baixada de uma forma inédita, abrindo uma nova fase
em um modelo desenvolvimentista que, desde o início do último século, produziu
tanto riquezas como desigualdades sociais e desequilíbrios ecológicos.
Aliás, é justamente esse histórico e emblemático conflito entre natureza e
avanço econômico vivenciado na região que levou a União Européia, patrocinadora
do trabalho, a escolher Santos como a única área no Brasil a desenvolver
o projeto.
"Os locais de estudo devem ser importantes em termos ecológicos e em
termos sócio-econômicos, além de ter uma comunidade científica local de nível
internacional. O estuário de Santos reúne todas estas condições", afirmou
o pesquisador português Ramiro Neves, do Instituto Superior Técnico de Lisboa.
Ele é o coordenador internacional do projeto, chamado 'Ecomanage - Sistema
Integrado de Administração Ecológica de Zona Costeira'. No Brasil, o trabalho
será capitaneado pela Universidade de São Paulo (USP) e pela Universidade Santa
Cecília (Unisanta).
Dúvidas
Além de Santos, outros dois estuários sul-americanos, Baia Blanca, na
Argentina, e o Fiorde de Aisén, no Chile, também desenvolverão pesquisa
semelhante. No final de fevereiro, todos os cientistas envolvidos nessas três
áreas, mais especialistas da Itália, Holanda e Portugal se reunirão em Santos,
durante quatro dias.
"O encontro marca o início simbólico do projeto pois, na verdade, o
trabalho já começou. Estamos, nós e a equipe comandada pela pesquisadora
Eduinetty Ceci, da USP, reunindo vários dados que serão agregados ao programa.
O que, eventualmente, faltar, será obtido com novas pesquisas", explica
Gilberto Berzin, da Unisanta, um dos coordenadores locais do trabalho.
A 'pressa' do professor Berzin é justificável. Jamais se tentaram reunir em um
único banco de dados, centenas e centenas de pesquisas feitas ao longo das
últimas décadas, todas sobre um dos ecossistemas mais complexos da natureza.
Na Europa, o simulador a ser colocado em operação em Santos já vem sendo
empregado em vários países. Segundo Ramiro Neves, ele é tido como
"particularmente importante" para que se atinja o ambicioso programa
de despoluir todos os rios do velho continente até 2015.
Em Santos, segundo a professora Ceci, chefe do laboratório de Ecotoxicologia da
USP, o inédito projeto permitirá "uma administração mais segura de todo o
estuário", uma área cuja dinâmica ainda não é totalmente compreendida
pelos próprios cientistas.
Mas, daqui a três anos, o estuário da Baixada Santista vai ganhar vida virtual,
vai dizer como se comporta. Daqui a três anos, o estuário vai falar.
Mistura de águas
Estuários são zonas de transição onde a água doce dos rios se
mistura com a água do mar. Na Baixada, esse encontro se dá muito distante da
praia, graças a uma série de intrincadas variantes naturais, inclusive e
principalmente as intervenções humanas. Ele se estende pelos municípios de
Santos, São Vicente, Guarujá, Bertioga, Cubatão e Praia Grande
Onde nasce um estuário
Onde começa o estuário da Baixada Santista? E onde ele termina? Em
tese, isso vai depender do ciclo das marés, das chuvas, da Lua e do Sol, entre
outros participantes, como os seres humanos.
Essas regiões se caracterizam pelo encontro da água doce dos rios com a água
salgada do mar. Para sabermos onde começa um estuário, é preciso saber até onde
essa água salgada consegue chegar.
Em Santos, o mar avança quilômetros adentro dos rios e cursos d'água, chegando
até o Largo do Canéu, em Cubatão. É nesse ponto que nasce o estuário, nessa
mistura de águas, nesse caldo de nutrientes que atrai as mais variadas
espécies.
Nós, a espécie humana, percebemos essa riqueza há apenas 5 mil anos, mas nesse
'piscar de olhos', mudamos mais a paisagem do que todos os astros juntos. Mas,
mesmo que o estuário não fosse habitado, ainda assim seria um verdadeiro
desafio compreender todos os seus humores.
O que a Ciência tem feito, com grandes avanços nos últimos anos, é correr atrás
da mãe natureza com a matemática. Daí nascem sofisticados programas de
computador. Uma vez abastecidos com os milhares de dados de centenas de estudos
já produzidos no estuário, surgem cenários virtuais, 'vivos', que ajudam a
desvendar as inúmeras nuances desse e de outros processos da natureza.
Essa tecnologia pretende fazer, ao longo dos próximos três anos, que os
estuários de Santos, Baía Blanca (Argentina) e o fiorde chileno de Aisén possam
consolidar conceitos que compatibilizem uma administração sustentável de toda
essa riqueza.
"Espero que o projeto possa diminuir os conflitos, pois as atividades hoje
desenvolvidas na região, como pesca, porto e indústrias, são confrontadoras e
discrepantes", afirma o professor de geociência da Universidade Estadual
Paulista(Unesp - campus São Vicente), Christiano Magini.
A partir do momento que o simulador virtual do Ecomanage começar a atender as
expectativas, "ficará mais claro", para toda a sociedade, as áreas
que devem ser destinadas à preservação, ao turismo, à economia e ao
monitoramento ambiental.
Hoje, e ao longo das últimas décadas, a falta de uma ferramenta capaz de prever
esses desdobramentos trouxe inúmeros e graves problemas para a região,
"com impactos diferenciados para cada faixa da sociedade", salienta
Magini.
A andança das enchentes
A moradores da ilha Diana, escondida na curva de um braço do rio
que passa atrás da Base Aérea de Santos, sempre souberam se adaptar a nem
sempre previsível dinâmica das marés estuarinas. Porém, há cerca de dez anos,
os ilhéus começaram a notar uma estranha mudança nesse perfil.
"A ilha começou a apresentar alagamento em agosto, um mês atípico para
esse tipo de ocorrência. Isso pode ter alguma relação com as mudanças feitas
pelo ser humano nesse ecossistema", especula Fabio Giordano.
O que o Ecomanage se propõe é acabar ou pelo menos diminuir sensivelmente essa
margem especulativa. "Demorou a aparecer um projeto desses na nossa
região. Estava na hora", comemora o pesquisador.
O momento talvez seja propício. Nos próximos anos, quem sabe já a partir de
2005, a região estuarina da Baixada Santista poderá receber grandes
investimentos.
O 'pontapé' inicial foi dado em Brasília, em dezembro último, quando o
presidente Lula sancionou a Parceria Público Privada (PPP) para atrair capital
particular para obras de infra-estrutura no País.
Reflexos
Em Santos, a PPP pode colocar em prática projetos como o Barnabé-Bagres (nome
de duas ilhas localizadas no canal de acesso ao porto) - uma área equivalente a
750 campos de futebol, na qual está prevista a criação de um grande terminal,
dotando o porto de 50 novos berços de atracação, a um custo de R$ 2 bilhões.
Os debates, audiências e análises dessas e de outras intervenções já estão
acontecendo. A idéia por traz de programas como o Ecomanage é tentar agregar a
essas discussões, o conhecimento científico, materializado em mapas digitais
capazes, por exemplo, de indicar se este ou aquele empreendimento trará esta ou
aquela consequência.
"Antes, quando as autoridades tinham a intenção de aterrar uma área do
estuário, bastava perguntar para o 'dono'. Agora, por meio do simulador
virtual, vamos perguntar para o mangue", exemplifica Giordano.
Para ele, é crucial descobrir como as alterações humanas mexem com a dinâmica
do ecossistema estuarino, "para onde" o ser humano direciona esse
encontro da água doce com a água do mar.
"Enchente pode mudar de lugar, pode ir para o manguezal, o que é bom, mas
também pode ser direcionada para uma área urbana. As pessoas precisam entender
que se faz lá no Largo do Canéu, terá reflexos em vários pontos, até na praia.
O estuário é de todos, mexe com todos e, a partir do momento que se consiga
melhor compreendê-lo, todos ganham".
Abundância de vida
Estuários são berçários e protetores naturais de uma grande
parcela da vida marinha. Na Baixada Santista, a diversidade desses seres ainda
surpreende. Existem pelo menos 185 espécies de peixes, tais como paratis,
tainhas, robalos e badejos. Também já foram catalogadas mais de 50 espécies de
crustáceos, entre siris, caranguejos (foto 1) e camarões. Temos, no mínimo, 33
diferentes espécies de moluscos, como berbigões e vôngoles. Estudos apontam ainda
um total de 210 espécies de aves, das quais cerca de 100 dependem diretamente
de rios, canais, bancos de lodo, florestas de mangue e brejos, como os biguás
(foto 2). A partir da mata de transição, seguindo em direção às restingas e a
Floresta da Mata Atlântica encontram-se, entre outros, o mão pelada (Procyon
cancrivorus - foto 3), um carnívoro de hábitos noturnos que também pode comer
ovos e até mesmo frutos, a lontra (Lutra longicaudis - foto 4), o gambá
(Didelphis aurita), o ratão do banhado (Myocastor coypus), o tatu-galinha
(Dasypus novemcinctus) e a capivara (Hydrochaerus hydrochaeris). Temos também
répteis como o jacaré do papo amarelo (Caiman latirostris), o teiú (Tupinambis
merianae) e as cobras jaracuçu (Bothrops jararacussu), a caninana (Spilotes
pillatus) e a cobra lisa (Liophis miliaris).