O alto-mar não é deserto



Poluição em alto-mar é menos visível, mas tem graves impactos sobre a fauna, assim como na zona costeira.

Em 20 de março deste ano, a nossa maior plataforma de petróleo, a P-36, definitivamente afundou. Na mesma noite, ouvimos a nota divulgada pela Petrobrás, segundo a qual "o único dano irreparável foi a perda de vidas humanas". Plenamente justificável a revolta dos familiares e colegas dos funcionários, que perderam suas vidas empenhando-se em sua faina na gigantesca estrutura. Mas entende-se também que esta é mais uma frase no rol das omissões ambientais, junto com outras tantas que, lamentavelmente, acostumamo-nos a ouvir, tais como "o óleo derramado não atingirá o litoral" ou "felizmente as correntes dispersarão rapidamente o óleo derramado para o alto-mar".

Aplicadas também para resíduos radioativos, materiais contaminados oriundos de dragagens portuárias etc., frases assim nos levam a crer que dispersar poluentes em alto-mar é uma solução. Fazem parecer que as espécies de mar aberto não existem ou não são importantes, que não se relacionam com as espécies costeiras e que é maior a probabilidade de encontrar vida em outros planetas do que nos nossos próprios oceanos.

Não podemos mais nos esquecer que os 70% de água do mar, que cobrem a superfície do planeta, estão permanentemente interconectados. Uma infinidade de espécies migratórias de baleias, golfinhos, aves, tartarugas e peixes, com uma visão geográfica completamente diferente da nossa costumeira visão antropocêntrica, cruzam essa imensa massa líquida de continente a continente passando por mais de 1400 ilhas oceânicas. Incontáveis organismos compõem o plâncton, que compreende ovos, larvas, fases juvenis, microalgas e tantos outros organismos flutuantes, transportados ao sabor das correntes. Eles são a base da cadeia alimentar e os responsáveis pela dispersão intra e inter-oceânica das espécies. São, portanto, parcialmente responsáveis pela manutenção da diversidade biológica e genética em nível global.

Todo óleo liberado em mar aberto significa um enorme risco impetrado às aves oceânicas como albatrozes e petréis, de distribuição muito restrita, já ameaçados de extinção por serem capturados acidentalmente nos espinhéis de alto-mar, com cerca de 70 km de extensão cada. Uma dessas espécies de petrel, Procellaria conspicillata, reproduz-se apenas na pequena Ilha Inacessível, em Tristão da Cunha, território britânico no Atlântico Sul. Agora, além dos espinhéis, também está ameaçada pelo óleo da P-36 e da P-7, onde ocorreu um vazamento de 26 mil litros, no último 12 de abril.

Quem imagina o mar aberto como um deserto isolado e sem vida em que todo tipo de resíduo "desaparece" com as correntes, desconhece, ainda, que vários recursos pesqueiros, principalmente os peixes ditos "de passagem" - como os atuns e bonitos - atravessam o alto mar em razão das migrações. Se não atingidos diretamente, são afetados através da cadeia alimentar.

E a nossa responsabilidade, no que se refere à redução dos estoques pesqueiros, estende-se também a todos os problemas sociais dela resultantes.

O dano causado pelo óleo sobre a biota no alto-mar não é diferente do que ocorre na costa, apenas é menos visível. Os estudos realizados na costa durante os dez anos decorridos após o acidente com o Exxon Valdez, no Alaska, permitem estimar o estrago: das 28 espécies atingidas pelo óleo, apenas duas se recuperaram. Baleias e outros mamíferos marinhos estão entre as que não tiveram recuperação.

Mesmo com nosso ainda escasso conhecimento sobre o alto-mar, em razão do elevado custo operacional das pesquisas nessa área, já é assustadora a quantidade e a variedade de espécies ameaçadas de extinção e de processos ecológicos vitais sob risco de serem interrompidos, alterando cadeias tróficas e ciclos reprodutivos.

Felizmente hoje já existem mudanças positivas. Após 20 anos de luta, a Comissão Mundial de Áreas Protegidas da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (UICN-CMAP) conseguiu difundir a necessidade e a importância da implantação de Unidades de Conservação (UCs) nas áreas marinhas. No Brasil, desde 1998, o Grupo Marinho da CMAP-Brasil atua, em parceria com setores governamentais e não-governamentais, na integração das UCs costeiras e marinhas e na elaboração de propostas e diretrizes para a conservação marinha em nível regional e global.

A estratégia de implantação de UCs tem se mostrado, ao longo desse período, como o mecanismo mais efetivo de proteção dos processos ecológicos fundamentais e da biodiversidade. Esse conceito já evoluiu, inclusive, para o desenvolvimento de ações integradas entre várias Unidades de Conservação, através da implantação dos chamados Corredores Ecológicos. E, agora, a estratégia da CMAP para o futuro inclui também a implantação de áreas protegidas em alto-mar, num Sistema Internacional de Áreas Marinhas Protegidas em mar aberto, como contraponto aos diversos impactos de origem antrópica sofridos, incluindo a utilização não-racional dos seus recursos.

A inserção desse conceito na comunidade global ainda é uma tarefa árdua, pois, estando longe da costa, não se vêem as ameaças nem os efeitos das catástrofes. Mas devemos ficar atentos, pois novas plataformas de petróleo estão sendo implantadas, e o ocorrido na P-36 e na P-7 deve, sobretudo, servir de base para a adoção de mais medidas preventivas, não apenas para evitar catástrofes, mas também para reduzir, durante as operações de rotina, a contaminação crônica "invisível" do mar que, decididamente, não é deserto.

Mabel Augustowski é oceanógrafa e bióloga e coordena o Grupo Marinho da UICN/CMAP-Brasil.