Ambiente Global: "Evolução interrompida"

Por Felipe A.P.L. Costa[1]

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Um observador da "vida selvagem" não deve encontrar dificuldades em reunir exemplos de plantas e animais que parecem estar muito bem ajustados aos lugares onde vivem: árvores que atraem polinizadores específicos para suas flores; lagartas que constróem abrigos nas folhas da planta-hospedeira; peixes que nadam em águas profundas sem morrer esmagados; morcegos que navegam no escuro sem trombar nos obstáculos etc. [2]. Biólogos evolucionistas procuram mostrar que esses e muitos outros exemplos não são apenas ilusões ou simples coincidências, mas resultados de um processo ativo de ajustamento: a evolução por seleção natural. "Evoluir" significa mudar e "evolução biológica" pode ser entendida como toda e qualquer mudança hereditária que ocorre em populações naturais, geração após geração.

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A ecologia torna a evolução inevitável: mesmo se os componentes abióticos do ambiente (variáveis climáticas, por exemplo) fossem "congelados" do jeito que são atualmente, os componentes bióticos (plantas, animais, fungos e microorganismos) continuariam a mudar [3]. E mudanças evolutivas em uma determinada população acabam provocando alterações nas pressões seletivas sobre as demais espécies com as quais ela interage. Se um novo tipo de defesa surge em uma população de presas, por exemplo, seus predadores logo passam a ser pressionados no sentido de evoluir algum tipo de contra-ataque -- sob pena de passar fome e correndo o risco de desaparecer. Nessas "corridas armamentistas", não existem soluções definitivas, pois evoluir novos tipos de defesa ou de ataque produz repercussões que vão e voltam...

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Populações naturais com pouco ou nenhum potencial para evoluir (isto é, com pouca ou nenhuma variabilidade genética) têm chances reduzidas de persistir a longo prazo em um mundo heterogêneo, no qual as condições de vida e a disponibilidade dos recursos estão sempre mudando -- tanto no espaço ("o que tem aqui, falta ali") como no tempo ("o que ontem era comum, hoje é raro"). A capacidade de evoluir é, portanto, indispensável para a persistência a longo prazo de populações que vivem em ambientes heterogêneos. Persistência de populações a longo prazo, no entanto, não significa persistência por tempo indefinido, pois cedo ou tarde todas elas serão extintas! Extinção é um fenômeno natural, tão natural quanto o fenômeno oposto, a especiação -- processo evolutivo pelo qual duas ou mais espécies surgem a partir de um mesmo ancestral. Ao longo da história da vida em nosso planeta -- uma jornada que já dura mais de 3.400.000.000 anos --, inúmeras espécies surgiram, deram origem a novas linhagens e então desapareceram, naturalmente.

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Ora, se extinções sempre ocorreram, por que se faz tanto barulho atualmente contra a perda de biodiversidade? Simplesmente porque a taxa de extinção -- número de espécies perdidas por unidade de tempo -- aumentou dramaticamente nas últimas décadas: enquanto os paleontólogos calibram as taxas de extinção das espécies fósseis que eles estudam em uma escala, digamos, anual, os conservacionistas falam das perdas atuais de espécies empregando uma escala graduada em dias ou mesmo em horas! Múltiplas evidências de extinções em massa provocadas por populações humanas têm sido encontradas em praticamente todas as regiões da Terra, mas, ao que tudo indica, nunca, antes, tantas espécies foram perdidas em um intervalo tão curto de tempo como agora [4]. Quando biólogos advertem para os riscos de extinção de populações locais ou para a ameaça de extinção global de espécies, eles não estão exatamente reivindicando a suspensão por decreto de um fenômeno natural, mas chamando a atenção para atividades humanas insensatas, como caça e pesca excessivas, poluição, introdução de espécies exóticas e destruição de hábitats, que ampliam ainda mais esses riscos.

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Nos últimos anos, a destruição física de hábitats naturais provocada pela nossa espécie -- florestas desmatadas, brejos aterrados, rios represados etc. -- assumiu o primeiro lugar na lista das causas de extinção em escala planetária [5]. Hábitats estão sendo destruídos em todo o mundo, mas a situação é mais dramática nas latitudes tropicais, onde algumas das populações humanas economicamente mais pobres e exploradas convivem com alguns dos sítios biologicamente mais ricos do planeta. Em Minas Gerais -- um dos estados brasileiros mais ricos em biodiversidade e, ao mesmo tempo, um dos mais atrasados em termos de proteção ambiental [6] --, muita coisa já foi destruída a troco de "vento e poeira": a cobrança de impostos sobre terras "improdutivas" (recobertas com vegetação nativa), por exemplo, fez com que durante muitos anos os agricultores mineiros simulassem "atividades produtivas" simplesmente queimando trechos florestados de suas propriedades, mesmo quando não precisavam fazê-lo. Talvez eles até viessem a desmatar a maior parte de suas propriedades, mas a ajuda do governo estadual acelerou e ampliou muito o alcance da destruição [7]. O desmatamento e o envenenamento do ar, da água e do solo provocados por mineradoras, siderúrgicas, carvoarias e outras indústrias "sujas" que ainda operam no estado, algumas delas tentando agora "vender" uma imagem de empresa "limpa e ecologicamente responsável", também mereceriam um capítulo à parte em um livro dedicado aos grandes crimes ambientais praticados no Brasil.

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Mantido o atual ritmo de destruição, em breve a paisagem tropical será formada por umas poucas "ilhas" de vegetação nativa mergulhadas em uma matriz de áreas empobrecidas ou degradadas -- pequenos remanescentes florestais cercados por extensas áreas de pastagens, por exemplo. De modo semelhante ao que acontece com as ilhas oceânicas, o tamanho e o grau de isolamento desses fragmentos afetam em cheio a biodiversidade e o tempo de persistência das espécies que sobrevivem dentro deles. O pior para uma ilha de vegetação é ser pequena e estar longe de outras áreas semelhantes, pois a perda de espécies é mais rápida e fácil em fragmentos pequenos e isolados, ao mesmo tempo em que a recolonização torna-se lenta e difícil. Em última análise, a fragmentação de hábitats naturais provoca um aumento generalizado nas chances de extinção entre as espécies remanescentes, elevando o número de "reféns" (espécies que passam a depender de nossa ajuda para continuar existindo) e o número de "mortos-vivos" (árvores adultas e fisiologicamente sadias, por exemplo, mas que não conseguem mais se reproduzir com sucesso) [8].

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Tudo isso acontece porque a fragmentação reduz o tamanho das populações, deixando muitas delas abaixo do tamanho mínimo crítico -- a chamada "população mínima viável". Não existe um número mágico universal, que possa ser usado indiscriminadamente com qualquer espécie, sob qualquer circunstância, mas a idéia fundamental embutida nesse conceito vale para todas as populações (vegetais e animais): há um número mínimo de indivíduos abaixo do qual a persistência não é mais possível, pelo menos não sem nossa intervenção deliberada. Na prática, como não é possível monitorar as flutuações numéricas de todas as populações que convivem em um mesmo hábitat (de 50 mil a 100 mil populações de espécies diferentes podem viver em alguns poucos hectares de floresta tropical), os biólogos procuram acompanhar o destino de uma ou outra "espécie-chave" -- árvores cujos frutos são explorados por muitos consumidores diferentes, por exemplo, ou grandes animais predadores que estão no topo da cadeia alimentar. De certo modo, as espécies-chaves funcionam como uma pista ou um indicador do que está ocorrendo dentro de sistemas ecológicos bem mais amplos.

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Mas, afinal, porque deveríamos nos preocupar tanto com a persistência a longo prazo de populações naturais? A resposta antropocêntrica mais óbvia para esta pergunta é: porque são elas que formam os sistemas ecológicos cujos "bens e serviços" sustentam (gratuitamente, por enquanto) a vida em nosso planeta --incluindo, é claro, a civilização humana [9]. A expressão "serviço ecológico" é um rótulo que tem sido aplicado a uma gama bastante ampla e variada de coisas, algumas óbvias e familiares, outras nem tanto. Os exemplos vão desde a polinização de plantas cultivadas e o controle de "pragas" agrícolas e vetores de doenças até a regulação da temperatura e da umidade relativa do ar, passando pela ciclagem de nutrientes (água, nitrogênio, carbono etc.) e a contenção de dunas e encostas. Quando um valor monetário foi atribuído a cada um dos bens e serviços ecológicos conhecidos, descobriu-se que a soma de todos eles superava com folga a soma de todos os bens e serviços produzidos pelo conjunto da economia mundial [10]. Por si só, este resultado já mostra a relevância que os empreendimentos que protegem a vida selvagem deveriam ter na agenda de qualquer governante sensato; em termos mais pragmáticos, ele nos dá uma idéia do quanto vale cuidar preventivamente dos sistemas de manutenção da vida em nosso planeta -- ou do quanto irá nos custar sua indispensável restauração no futuro. Em resumo: interromper a evolução pode simplesmente nos custar muito caro...