Folha Mais+ 23 de abril de 2006

AS PORTAS DA COMPREENSÃO
por Ian McEwan


LIVROS COMO "O GENE EGOÍSTA", DE RICHARD DAWKINS, LANÇADO HÁ 30 ANOS, DEMOCRATIZAM O SABER CIENTÍFICO E AJUDAM A COMBATER OS TOTALITARISMOS POLÍTICO E RELIGIOSO

Os amantes da literatura tendem a dar como certa a idéia da existência de uma tradição literária. Trata-se em parte de um mapa temporal, um meio de navegar pelos séculos e conexões entre escritores.
Ajuda saber que Shakespeare [1564-1616] antecedeu Keats [1795-1821], que, por sua vez, antecedeu Owen [1893-1918], porque com isso se torna possível traçar linhas de influência interessantes. E, em parte, uma tradição deixa implícita uma hierarquia, um cânone, que, convencionalmente, traz Shakespeare na posição dominante, como um bonequinho solitário no topo de um bolo de casamento, enquanto todos os outros escritores estão dispostos em camadas descendentes.
Nos últimos anos, o cânone vem sendo criticado por ser demasiado masculino, excessivamente de classe média, eurocêntrico demais. Mas não se questiona o valor do cânone em si. Fica claro que, se não existisse, ele não poderia ser contestado.
Acima de tudo, porém, uma tradição literária implica um senso histórico ativo do passado vivo no presente e moldando esse presente.
De maneira recíproca, uma obra de literatura produzida no presente modifica, de maneira infinitesimal, nosso entendimento do que foi feito no passado. Em seu famoso ensaio "Tradição e Talento Individual", T.S. Eliot [1888-1965] argumentou que não se pode valorizar um poeta por si só: "É preciso situá-lo entre os mortos, para fins de contraste e comparação". Eliot não achava absurdo "que o passado seja alterado pelo presente tanto quanto o presente é dirigido pelo passado".
Podemos discernir o espectro de Auden [1907-73] nos versos de um poema de James Fenton [1949], ouvir ecos de Wordsworth [1770-1850] em Seamus Heaney [1939] ou de Donne [1572-1631] em Craig Raine [1944]. Tendo lido nossos contemporâneos, nós idealmente retornaríamos para reler os poetas mortos à luz de um novo entendimento.

A ciência prefere esquecer boa parte de seu passado: é obrigada a praticar uma amnésia seletiva

Numa tradição artística viva, os mortos nunca chegam a morrer por completo.

Tradição paralela
Podem a ciência e a literatura científica, que formam um secular e vasto acúmulo de escritos semi-esquecidos, nos oferecer uma tradição viva paralela? Se podem, como poderíamos começar a descrevê-la? Os problemas de escolha se igualam apenas aos dos critérios a adotar.
A literatura não se aperfeiçoa -ela apenas se modifica. A ciência, por outro lado, sendo um intricado sistema de pensamento que se autocorrige, avança e refina sua compreensão dos milhares de objetos de seu estudo. É daí que ela deriva seu poder e seu status. A ciência prefere esquecer boa parte de seu passado: por sua própria característica básica, é obrigada a praticar uma forma de amnésia seletiva.
Será a acuidade, o estar no caminho correto -ou algo que dele se aproxima- o critério mais importante de seleção? Ou o estilo deve ser o critério último? Os escritos de Thomas Browne [1605-1682], Francis Bacon [1561-1626] ou Robert Burton [1577-1640] contêm muitos trechos belos que hoje sabemos ser factualmente errados -mas com certeza não quereríamos excluí-los da tradição. Esta precisa conservar um lugar para Aristóteles [384-322 a.C.] e Galeno [129-216], devido ao peso da influência que exerceram sobre as mentes das pessoas durante séculos.
Precisamos nos acautelar contra a possibilidade de deixar implícita uma história conservadora da ciência, uma história da trilha solitária que conduz ao presente. Devemos recordar os vários brinquedos que a ciência descartou -os humores, os quatro elementos, o flogisto, o éter e, mais recentemente, o protoplasma.
A química moderna nasceu das ambições vãs da alquimia. Os cientistas que enveredam por becos sem saída realizam um serviço: eles poupam muito trabalho a todos. Nesse caminho, eles podem também aperfeiçoar técnicas e fornecer a seus contemporâneos pontos de resistência, cantiléveres intelectuais.
Digo tudo isso com um certo espírito de dever, porque, na realidade, existe um prazer especial a ser compartilhado quando um cientista ou escritor científico nos conduz em direção à luz de uma idéia poderosa, que, por sua vez, abre caminhos de exploração e descoberta que nos levam ao futuro distante, tecendo vínculos entre muitos fenômenos distintos em muitos campos de estudo diferentes.
Alguns podem chamar isso de verdade. Ela possui uma qualidade estética que não se encontra nas afirmações confiantes e confusas de Galeno acerca da natureza da enfermidade. Por exemplo, existe algo da qualidade luminosa da grande literatura quando Charles Darwin [1809-82], aos 29 anos de idade, apenas dois anos após o retorno de sua viagem no Beagle e 21 anos antes de publicar "A Origem das Espécies", confia a um caderno de anotações os primeiros indícios de uma idéia simples e bela: "A origem do homem está comprovada... Aquele que compreende o babuíno talvez faça mais pela metafísica do que fez Locke".
Seria muito melhor, talvez, deixar de lado questões de verdade e imprecisão, critérios e definições. Conhecemos aquilo de que gostamos quando o saboreamos. Até recentemente, a tradição puramente literária nunca foi obrigada a definir seus termos. A obra vinha primeiro; os comentários a seu respeito, depois. Em certo sentido, estou apenas lançando um apelo em favor de uma grande brincadeira de salão: o que poderia ser uma tradição literária científica? Que livros vão figurar em nossas estantes?
Propor essa pergunta significa pedir para ser contestado. Eu mesmo já desconfio que minhas sugestões sejam demasiado masculinas, excessivamente de classe média, anglo-americanas demais.

À boca pequena
Eis a introdução de um ensaio -ou, estritamente falando, uma carta- sobre imunologia.
"Comenta-se à boca pequena na Europa cristã que os ingleses são loucos e maníacos: loucos porque dão varíola a seus filhos para impedir que eles a contraiam, e maníacos porque alegremente transmitem a seus filhos uma doença certa e terrível, no intuito de prevenir uma enfermidade incerta. Os ingleses, por seu lado, dizem: "Os outros europeus são covardes e desnaturados: covardes na medida em que têm medo de infligir uma dor pequena a seus filhos, e desnaturados porque os expõem à morte por varíola em algum momento do futuro". Para avaliar quem está com a razão nessa disputa, eis a história dessa célebre inoculação da qual se fala com tanto horror fora da Inglaterra."
Trata-se de Voltaire escrevendo no final da década de 1720, durante uma estada prolongada na Inglaterra, e apresentando um caso raro de intelectual francês bem impressionado com as idéias inglesas. Em suas "Cartas Filosóficas" -traduzidas ao inglês como "Letters from England" [Cartas da Inglaterra]-, Voltaire escreveu lindamente sobre religião, política e literatura. Ele ficou muito satisfeito com o grau de liberdade política que encontrou na Inglaterra, com os poderes do Parlamento, a ausência de absolutismo religioso e do direito divino.
Ele assistiu ao funeral de Newton e ficou estarrecido pelo fato de um humilde cientista ter sido enterrado na abadia de Westminster, como um rei. Crucialmente, Voltaire se posicionou entre um cientista e o público interessado, oferecendo exposições excelentes das teorias de Newton sobre a ótica e a gravitação, exposições essas que ainda merecem ser levadas em conta hoje. Quem quiser saber o que havia de inovador e ousado no que Newton dizia deve ler Voltaire. Ele comunica o caráter instigante de uma idéia nova e fixa os padrões mais altos de lucidez.
No ano passado, meu filho William concluiu um curso de graduação em biologia na Universidade de Londres. Quando estudou genética, foi aconselhado a não ler artigos escritos antes de 1997. A lógica desse conselho é compreensível. Nos últimos anos, as estimativas quanto ao tamanho do genoma humano encolheram em três ou mesmo quatro vezes. Tal é a natureza acelerada da ciência contemporânea.

Quando meu filho estudou genética na Universidade de Londres, foi aconselhado a não ler artigos escritos antes de 1997

Mas, se enxergarmos a ciência apenas como um feixe de luz que se move pelo tempo, movendo-se para a frente em meio à área ainda escura e deixando as trevas da ignorância em sua esteira, sempre mostrando seu aspecto melhor apenas no presente incandescente, daremos as costas a uma história épica de inventividade impelida pela curiosidade.
Eis um homem que, com cuidado infinito, moeu algumas lentes e as dispôs de maneira nova. Ele pegou um pouco de água de um lago e a examinou com cuidado escrupuloso e mente aberta: "Encontrei boiando na água diversas partículas terrosas e alguns traços verdes, enrolados em espirais serpenteadas e dispostos de maneira ordeira... Outras partículas apresentavam apenas o início do traço acima mencionado; mas todas consistiam de glóbulos verdes muito pequenos interligados, e havia também muitos pequenos glóbulos verdes... Esses animáculos tinham cores diversas, sendo alguns deles esbranquiçados e transparentes, outros com pequenas escamas verdes e muito brilhantes... E o movimento da maioria desses animáculos na água era tão veloz e tão variado em sentido ascendente, descendente e giratório que era maravilhoso de ver; e avalio que algumas dessas pequenas criaturas eram mais de mil vezes menores do que as menores que já pude ver...".
Ele é Leeuwenhoek [1632-1723], escrevendo da Holanda para a Royal Society, em 1674, fazendo a primeira descrição de "spirogyra", entre outros organismos. Ele enviou suas observações à Royal Society ao longo de 50 anos, e não foi por acaso que foi para lá que enviou suas cartas. Naquela época, num espaço pequeno e durante o tempo de duas gerações, quase toda a ciência do mundo esteve presente no interior do triângulo formado por Londres, Cambridge e Oxford. Newton, Locke (acho que devemos incluir alguns filósofos -Hume, quase certamente), Willis, Hooke, Boyle, Wren, Flamsteed, Halley -uma concentração incrível de talentos e o núcleo de nossa biblioteca: o momento clássico dela, por assim dizer.
Neste ano será comemorado o trigésimo aniversário da publicação de "O Gene Egoísta" (Itatiaia), de Richard Dawkins. Nunca houve um livro de ciências como esse. Inspirado no trabalho de vários cientistas, o livro reuniu a genética e a seleção natural darwiniana numa síntese criativa que surpreendeu e agradou mesmo aos poucos que já estavam familiarizados com seus conceitos.
Ele acelerou uma transformação cabal na teoria da evolução, afetou profundamente o ensino da biologia, atraiu para o tema toda uma geração mais jovem e entusiasmada e, por fim, propiciou o surgimento de uma literatura imensa e, eventualmente, de uma nova disciplina -a memética. Ao mesmo tempo -e essa é a medida da conquista que realizou-, dirigiu-se ao leitor leigo, sem condescendência. E o fez de maneira provocativa e dotada de estilo.
"Os indivíduos não são coisas estáveis -são passageiros. Também os cromossomos são embaralhados e empurrados ao esquecimento, como mãos de cartas depois de serem embaralhadas. Mas as cartas, em si, sobrevivem ao embaralhamento. As cartas são os genes. Os genes não são destruídos pelo cruzamento -eles apenas trocam de parceiros e seguem adiante. É claro que seguem adiante. Esse é seu trabalho. Eles são os reprodutores, e nós, suas máquinas de sobrevivência. Depois de servir aos propósitos que nos são destinados, somos descartados. Mas os genes são os habitantes do tempo geológico: eles são eternos."
É uma frase bela: "Embaralhados e empurrados ao esquecimento", e a analogia com cartas de baralho -sendo a mão de cartas a informação, e as cartas em si, os genes- é apropriada, econômica e informativa. Ou seja, eloqüência verdadeira.
Nos anos passados desde então, o trabalho de Dawkins pode ser visto como um convite extenso feito a nós, não-cientistas, para que tenhamos prazer com a ciência, para que nos deleitemos com o banquete da inventividade humana.
Do mesmo modo que podemos nos sentar em volta de uma mesa de cozinha e falar de ópera, cinema ou romances, sem sermos compositores, cineastas ou escritores, podemos discutir esse tema, mais uma realização sublime da criatividade acumulada. Podemos torná-lo "nosso" do mesmo modo que podemos fazer com a música de Bach ou de Bill Evans.
Uma tradição literária na ciência com certeza nos ajudaria a fazer isso, e uma contribuição importante para o desenvolvimento da idéia de um passado vivo é "The Faber Book of Science" [Livro de Ciência da Editora Faber], de John Carey [1934], uma antologia magistral e contendo comentários insuperáveis.
Nela encontramos um longo trecho extraído da famosa palestra "On a Piece of Chalk" (Sobre um Pedaço de Greda), de Thomas Huxley [1825-1895], proferida diante de um salão repleto de trabalhadores em Norwich, em 1868. A palestra contém a sentença sedutora "um grande capítulo da história do mundo está escrito na greda...".

Argumento anti-racista
Naturalmente, Huxley nos conduz a Darwin. Meu favorito especial é "A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais", no qual ele argumenta que as emoções são elementos humanos universais, comuns a todas as culturas. Ele também apresenta um argumento anti-racista em favor da natureza humana comum.
Trata-se de um dos primeiros livros de ciência a fazer uso de fotos -no caso em pauta, uma foto de um dos bebês da família Darwin num cadeirão alto, berrando.
Quando chegamos ao presente, nosso jogo de salão se intensifica, pois nos vemos nadando em riquezas. "O Gene Egoísta" marcou o início de uma era de ouro da literatura científica. Com um ótimo senso de tradição literária, o físico Steven Weinberg [1933], em seu livro "Sonhos de Uma Teoria Final" (Rocco), revisitou o ensaio de Huxley sobre a greda, para apresentar um argumento em favor do reducionismo.
A aplicação feita por Steven Pinker [1954] do pensamento darwiniano à lingüística chomskyana, em "O Instinto da Linguagem" (Martins Fontes), é uma das mais belas celebrações da linguagem da qual tenho conhecimento.
Entre muitos outros "clássicos" indispensáveis, eu proporia "Diversidade da Vida" (Companhia das Letras), de E.O. Wilson [1929], sobre as maravilhas ecológicas da floresta amazônica e a miríade de microorganismos presentes em um punhado de terra; a descrição magistral feita por David Deutsch [1953] da teoria dos muitos mundos, em "A Essência da Realidade" (Makron); a fusão feita por Jared Diamond [1937] de história e pensamento biológico em "Armas, Germes e Aço" (Record); a hipnótica descrição da neurociência das emoções feita por Antonio Damasio [1944] em "The Feeling of What Happens" [O Sentimento do que Acontece]; Matt Ridley [1958], destrinchando a oposição entre natureza e criação em "Nature via Nurture" [Natureza via Nutrição], e, mais recentemente, o filósofo Daniel Dennett [1942], consciente de Hume assim como de Dawkins, quando nos apresenta a memética da fé em "Breaking the Spell" [Quebrando o Encanto].

Religião e censura
Uma parte importante dos escritos e das palestras públicas de Richard Dawkins tem sido dedicada à religião -ele se nega a passar por cima das contradições inatas entre razão e fé. Acho que em meados dos anos 1970, quando "O Gene Egoísta" foi publicado, poucos de nós teríamos imaginado que iríamos dedicar tanto espaço mental à discussão da fé religiosa neste novo século.
Pensávamos que, como a religião não tem absolutamente nada de útil a dizer sobre a cosmologia, a idade da terra, a origem das espécies, a cura das doenças ou qualquer outro aspecto do mundo físico, ela tivesse finalmente se retirado para seu devido lugar -a privacidade da consciência individual.
Estávamos enganados. Uma grande gama de adoradores do deus celestial, dotados de suas certezas numerosas e mutuamente excludentes (todas as quais devemos "respeitar"), parece estar ocupando uma parte cada vez maior do espaço do discurso público. Cada vez mais eles parecem querer nos dizer como devemos viver e pensar ou então nos infligir as restrições que escolhem impor a eles mesmos.
O que se lê a seguir é um trecho tirado da antologia de Carey, e, em minha biblioteca científica ideal, quero que ele seja gravado em algum lugar especial -talvez sobre a porta, para ser lido por quem entra.

Os inimigos
Eis um homem que acaba de ser ameaçado de tortura e prisão por tempo indeterminado, a não ser que assine sobre a linha pontilhada que lhe é imposta.
"... Tendo diante de meus olhos o Santo Evangelho, e tocando-o com minhas mãos, juro que sempre acreditei, acredito e, com a ajuda de Deus, acreditarei no futuro em tudo o que é afirmado, pregado e ensinado pela Santa Igreja Católica e Apostólica... Que devo abandonar por completo a falsa opinião de que o Sol é o centro do mundo e é imóvel e que a Terra não é o centro do mundo e se move, e que não devo crer, defender ou ensinar a dita doutrina de qualquer maneira, seja verbalmente ou por escrito..."
Ou, como dizia Orwell, "dois mais dois são cinco". Em 1632, Galileu pode ter sussurrado para si mesmo, enquanto assinava, "mas ela se move, sim". Isso é algo que nunca vamos saber. Mas sua confissão nos faz lembrar que a pesquisa racional e de mente aberta sempre teve seus inimigos. Não podemos dar nada como garantido e certo, pois o pensamento totalitário, quer seja religioso ou político, sempre estará conosco, sob uma forma ou outra.
Nem que seja unicamente por esse motivo, devemos fomentar uma tradição literária científica viva.


Copyright: Rogers, Coleridge & White Ltd.
Tradução de Clara Allain.