TRADUÇÕES & TRAIÇÕES
Nem sempre é culpa da mídia
Por Felipe A. P. L. Costa em 1/3/2011
Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=631JDB002
Erros e
mal-entendidos grosseiros envolvendo termos e conceitos científicos ainda são
comuns na mídia, como este Observatório costuma registrar (ver, por exemplo, "Dissonâncias
conceituais em nossa mídia", OI nº 271, de 6/4/04; "Precisão ou imperícia
numérica?", OI nº 328, de 10/5/05; e "Demografia confunde imprensa",
OI nº 376, de 10/4/06). Nem tudo, porém, pode ser debitado na conta de repórteres
e editores: a comunidade científica também desempenha um papel expressivo nessa
história toda (ver, por exemplo, "Como usar o `bom
senso´ para gerar bobagens", OI nº 264, de 17/2/04). Há várias razões para
isso. Uma delas: os cientistas brasileiros escrevem
relativamente pouco. (Escrever e publicar não são exatamente a mesma
coisa, de sorte que alguns caciques conseguem publicar mesmo sem escrever.) Outra:
muito do pouco que se escreve, em geral, é mal escrito.
Trata-se,
aparentemente, de um problema cíclico e de berço: muitos jovens estudantes
universitários estão se desenvolvendo em uma atmosfera acadêmica
inerte e amorfa, desprovida de senso crítico. A situação tende a se
reproduzir à medida que alguns deles se tornam professores e passam a ensinar
aos seus alunos mais ou menos o mesmo que aprenderam nos tempos de estudante: não
critique nem polemize, apenas obedeça; mais tarde, quando puder, mande.
Como
leitor, tenho convivido com textos de quatro universos ligeiramente distintos: 1)
artigos publicados em revistas científicas (técnicas e de divulgação); 2) livros
didáticos (destinados ao ensino fundamental e médio); 3) livros técnicos (destinados
ao ensino universitário e a professores e cientistas); e 4) livros de divulgação
científica (destinados ao público leitor em geral). No que segue, vou abordar
algumas questões envolvendo principalmente os itens 3
e 4.
Bons e
maus exemplos
A grande
maioria dos livros técnicos e de divulgação disponíveis hoje no país foi
originalmente publicada em outro idioma, notadamente em inglês. Para traduzir
uma obra dessas para o português, as editoras brasileiras em geral contratam os
serviços de um ou mais tradutores e, às vezes, de um ou mais revisores técnicos.
Os tradutores costumam ser remunerados por "metro
quadrado": tantas páginas, tantos reais. Em princípio, isso não é nenhum
fim de mundo. Algo semelhante acontece com outros profissionais: professores da
rede particular de ensino, por exemplo, costumam ser
remunerados por hora/aula, enquanto os
motoristas de táxi recebem por quilômetro rodado. O problema surge quando a
remuneração é muito baixa, fazendo com que esses profissionais tentem aumentar
seus ganhos elevando ao máximo a carga semanal de trabalho. O resultado final,
em geral, não é dos melhores.
Uma baixa
remuneração não é, contudo, a única explicação plausível para o rico e variado
leque de problemas que habitualmente encontramos nos livros publicados no país.
Até porque as barbeiragens proliferam tanto em livros traduzidos por um único
profissional como naqueles que contaram com a participação de um ou mais
revisores técnicos. Às vezes, o cuidado com a obra é perceptível – meu exemplo
favorito ainda é o livro O homem e o mundo natural (Companhia das Letras, 1987),
de Keith Thomas: além do tradutor, a editora contratou dois revisores, um para
os termos zoológicos e outro para os termos botânicos. Infelizmente, porém,
cuidado e esmero não são regras em nosso mercado editorial.
Não vou
enfileirar exemplos de picaretagem, mas talvez seja oportuno registrar que
algumas editoras brasileiras trilham o caminho da pirataria, fazendo aquilo que
muitas empresas já fizeram mundo afora: apropriar-se indevidamente do trabalho
alheio. Exemplo: nomes fictícios são usados para disfarçar a apropriação de
obras vertidas para o português por terceiros – tradutores
reais, em geral já falecidos.
Pirateando
um clássico
Ao contrário
do que possa parecer, no entanto, isso não ocorre apenas com obras obscuras. Na
verdade, um dos exemplos mais impressionantes de pirataria envolve as edições
brasileiras do famoso livro A origem das espécies, do naturalista inglês
Charles Darwin (1809-1882).
A
primeira edição original de A origem das espécies foi publicada por uma editora
londrina. Todos os exemplares disponíveis para compra (aproximadamente 1,2 mil),
postos à venda em 24/11/1859, se esgotaram de um dia para o outro. Em janeiro
de 1860, foi lançada uma segunda edição; outras quatro edições apareceriam ao
longo dos 12 anos seguintes: 1861, 1866, 1869 e 1872. Logo surgiram versões em
alemão, francês, holandês, russo, italiano e sueco.
Embora as
ideias darwinistas tenham repercutido prontamente entre
nós, a primeira edição brasileira de A origem das espécies só apareceria, até onde
sei, em 1979 – isto é, exatos 120 anos após a publicação da primeira edição
original. Desde então elas se multiplicaram. O problema é que a maioria das edições
brasileiras é plágio de uma edição portuguesa, originalmente publicada pela
editora Lello & Irmão (Porto), em
"Miséria
pouca é bobagem"
Eis o
comentário de uma tradutora profissional a respeito do caso:
"Vou
começar pelo básico: concorde-se com Darwin ou não, A origem das espécies é uma obra absolutamente fundamental, tida por muitos como a
obra mais influente de toda a história da humanidade desde a Bíblia, não só por
seu radical impacto científico e cultural, mas por ter determinado uma profunda
transformação nos rumos do pensamento e da prática humana.
Então,
acho uma miséria que o Brasil disponha, até onde sei, apenas de duas – duas – traduções
legítimas d´A origem das espécies
após 150 anos de sua primeira edição.
Acho uma
vergonha que o Brasil disponha, até onde sei, de cinco – cinco – falsificações
numa incessante sequência de reedições infindáveis,
além de uma edição ainda em análise.
Acho uma
lástima que o Brasil disponha de cinco falsificações de uma provecta tradução
portuguesa que não é direta do inglês, e sim, por interposição do francês.
Acho um
tremendo azar que o Brasil disponha de cinco falsificações de uma tradução que,
além de interposta, parece demonstrar talvez não suficiente conhecimento da língua
de interposição.
Além de
achar uma miséria, uma vergonha, uma lástima e um tremendo azar, acho o fim da
picada que estudantes, pesquisadores e leitores em geral passem décadas lendo
um texto com não pequenos deslizes e ademais plagiado, justamente nas edições
de maior circulação no país" – Denise Bottmann. "Miséria pouca é bobagem". Publicado no
blogue Não gosto de plágio, em 30/10/2009. Disponível
aqui (acesso em 26/2/2011).
Aptidão,
aptidão inclusiva, adaptação
Mas
voltemos ao ponto: erros e mal-entendidos grosseiros decorrentes de traduções
equivocadas povoam os livros técnicos vertidos para o português com uma frequência acima do razoável. Às vezes, a quantidade e a
extensão desses problemas são tão grandes que é difícil evitar a conclusão de
que alguém (o tradutor, o revisor, o editor) dormiu durante o serviço ou foi
deliberadamente desleixado com o seu trabalho. Tenho aqui comigo alguns
exemplos a favor dessa hipótese. Mas tenho também outros exemplos, mais brandos
(e mais numerosos), sugerindo que os tradutores muitas vezes reproduzem erros e
mal-entendidos simplesmente porque não dominam muito bem a "matéria-prima"
sobre a qual estiveram debruçados – isto é, o conteúdo da obra e os idiomas
envolvidos.
Esse é um
ponto importante, a respeito do qual os editores de livros técnicos deveriam
prestar um pouco mais de atenção: uma tradução pode resultar desastrosa tanto
por falta de domínio linguístico (principalmente do
português) como por falta de domínio do assunto em questão. Arrisco dizer que
os melhores tradutores são aqueles que sabem se expressar muito bem em português.
Vou
ilustrar o comentário acima a respeito de erros e mal-entendidos utilizando três
expressões de uso corrente em biologia evolutiva, a disciplina científica que
Darwin ajudou a criar: "aptidão", "aptidão inclusiva" e "adaptação".
A tradução para o português dos termos correspondentes em inglês – fitness, inclusive fitness e adaptation, respectivamente – tem dado margem a uma série
de problemas.
Veja-se o
caso do livro Princípios de genética de populações (Artmed,
2010), de Daniel L. Hartl e Andrew G. Clark, tradução
da quarta edição (2007) de uma das mais conceituadas obras disponíveis na área.
Adquiri recentemente um exemplar da edição brasileira e, dias atrás, por conta
de um trabalho, fui folhear o capítulo 5 ("Seleção darwiniana"). A
certa altura, ao invés de encontrar "aptidão" (fitness,
no original), deparei com "adaptação". O problema se repetiu logo
adiante – uma, duas, inúmeras vezes. Percebi, então, que não era apenas um erro
de digitação ou um mero deslize, mas uma opção deliberada feita pelo pessoal
envolvido com a tradução. (Ao que parece, o termo "aptidão" foi
inteiramente suprimido da versão brasileira, pois sequer consta do índice, ao
final do livro.) Além de grave e grosseiro, penso que o contexto – trata-se de
um livro técnico, e não apenas de um livro de divulgação – dá uma maior
reverberação ao erro, ampliando em muito a sua importância. Muitos leitores
inadvertidos poderão reproduzir o mesmo erro, tendo agora como "justificativa"
o fato de que estão usando as palavras tiradas de uma
conceituada obra de referência. (O livro é muito bom; após o incidente, no
entanto, fiquei inseguro, com medo de outras barbeiragens que possam vir pela
frente...)
Efeito
cascata
Outras
obras anteriormente publicadas em português já reproduziram erros de tradução
envolvendo os conceitos de aptidão e adaptação – o que, claro, não deveria ser
usado pelos tradutores mais jovens como justificativa para abonar suas
barbeiragens. Exatamente o mesmo tipo de erro (tratar aptidão e adaptação como
sinônimos) apareceu antes, por exemplo, no livro Princípios de genética de
população [sic] (Funpec, 2008), de Daniel L. Hartl.
Veja-se
ainda o caso do livro A economia da natureza (Guanabara Koogan,
2003), de Robert E. Ricklefs, tradução da quinta edição
(2001) de uma das mais conceituadas obras disponíveis na área. Na versão em
português do livro, fitness e adaptation
não são tratados como sinônimos; em compensação, os termos fitness
e inclusive fitness foram traduzidos por "ajustamento"
e "ajustamento inclusivo", e não por "aptidão" e "aptidão
inclusiva", como seria esperado. Uma bizarrice que resultou em erro
igualmente grosseiro. Aptidão e adaptação são dois conceitos biológicos importantes
e distintos. Não deixar isso claro para o leitor de um livro-texto é um erro
grave. (O leitor interessado talvez goste de saber que ambos são detalhadamente
discutidos em outra obra da Artmed; por sinal, o
melhor livro-texto de biologia evolutiva disponível hoje no país, a saber: Análise
evolutiva [2009], de Scott Freeman e Jon C. Herron.)
Trata-se
também, como foi dito antes, de um erro sério, com desdobramentos que vão além
dos bancos universitários. Assim, o que começou como uma decisão equivocada (tratar
fitness e adaptation como
sinônimos, traduzindo ambos por "adaptação") pode se converter de
imediato em uma nuvem de confusão conceitual a chover na cabeça dos leitores e,
a partir daí, em um efeito cascata, chegar até os autores de livros didáticos e
aos professores e alunos das redes de ensino (médio e fundamental).
O que
esperar de pequenas editoras?
A
preocupação com o rigor e a boa apresentação das traduções de livros técnicos
deveria ser universal. Os casos citados aqui são particularmente preocupantes,
pois as principais editoras envolvidas (Artmed e
Guanabara Koogan) são dois gigantes do mercado
editorial brasileiro.
Se as
grandes editoras, que podem investir mais na contratação de bons profissionais,
ainda publicam traduções ruins e difíceis de ler (uma profusão de erros e mal-entendidos
em meio a frases mal-construídas), o que podemos esperar então das editoras de
pequeno e médio porte?