O MAR NÃO ESTÁ PRA PEIXE

Washington Novaes

Tantos são os problemas, aqui e fora, que está em curso uma campanha mundial para ampliar as áreas marinhas sob proteção legal. Hoje, elas representam apenas 1% da superfície dos mares. A cada dia se tornam mais evidentes os sinais de um conflito frontal entre as informações da ciência e os rumos que vai tomando a política nacional de pesca - a ponto de se tornarem urgentes um esclarecimento e uma discussão, sob risco de graves questões e prejuízos.
Estudo recente de dezenas de cientistas, inclusive da Fapesp, mostrou que grande parte das espécies mais pescadas na costa brasileira, da Bahia até o Sul, já está sobreexplorada ou em risco de extinção. A idênticas conclusões chegaram também os estudos no âmbito do Revizee, coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente e destinado a orientar as ações nacionais para conservação da biodiversidade marinha na zona econômica exclusiva do País.
Esses estudos, que pela primeira vez incluíram também águas profundas, até 2 mil metros, mostraram que nestas, ao contrário do que se esperava, o número de espécies é alto, mas de biomassa muito limitada - o que em praticamente nada amplia as possibilidades da pesca oceânica comercial.

Não é um problema apenas brasileiro. Os últimos levantamentos da Organização para a Agricultura e Alimentação (FAO), da ONU, dizem que cerca de metade dos estoques pesqueiros do mundo já estão sobreexplorados (com risco de extinção para as espécies, por causa do consumo maior que a capacidade de reposição da natureza) e outros 25%, no limite da capacidade. Quase todas as espécies de maior porte e consumo do Atlântico Norte estão perto da extinção, entre elas o bacalhau. Já há uma proposta de incluir várias dessas espécies na lista de peixes em extinção - sob forte oposição de vários países, principalmente o Japão. O comércio internacional de pescado passou de US$ 15 bilhões anuais para US$ 57,7 bilhões entre 1980 e 2003. Outro estudo, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), mostra que em 15 anos dobrou o número de zonas mortas no mar, por carência de oxigênio. O problema vai do Mar Báltico e do Mar Negro ao Adriático, da Irlanda ao Golfo do México. Há zonas mortas também na América do Sul, na Austrália, na China, na Nova Zelândia, no Japão. Algumas, com 1 quilômetro quadrado, outras com até 70 mil. Para este problema contribui a deposição de esgotos humanos e poluentes industriais. E também, em escala cada vez maior, fertilizantes utilizados na agricultura. Porque, dos 120 milhões de toneladas de nitrogênio usados a cada ano nas culturas, apenas 20 milhões são retidos nos alimentos; o restante é carreado para os rios juntamente com o solo erodido (no Brasil, 10 quilos de solo por quilo de grão, em média), e deles para o mar.
A concentração de nutrientes favorece a reprodução de algas microscópicas que se decompõem e afundam nas águas, usando o oxigênio disponível e "sufocando" outros seres vivos marinhos. Diz o Pnuma que é um processo mais prejudicial do que a pesca predatória (uns 20% do total pescado não tem utilidade comercial, é jogado fora).
Um problema tão grave que já levou a um pacto de alguns países europeus, que permitiu reduzir em 37% a quantidade de nitrogênio que chega ao Mar do Norte.

Apesar de todo esse panorama, o Brasil está levando adiante um programa nacional de pesca que pretende aumentar a captura (hoje perto de 700 mil toneladas/ano) de espécies oceânicas em 50% (diz o Ministério da Pesca que já cresceu 30% em 2003) e o consumo de nacional de pescado, dos atuais 7 quilos por habitante/ano para 12 quilos.
Para tanto, várias medidas já foram anunciadas, entre elas um financiamento de R$ 1,5 bilhão para expandir a frota pesqueira, uma redução de 20% no preço do óleo diesel para essas embarcações, outros financiamentos para infra-estruturas de apoio e até um decreto que permite o uso de águas públicas da União. Este último parece ter relação com o cultivo de camarões, que levou o Brasil a exportar 60 mil toneladas em 2003 (uns 5% do total mundial), no valor de US$ 240 milhões (os Estados Unidos acusam o Brasil de estar promovendo dumping nessa atividade), a maior parte procedente de culturas em manguezais (áreas da União) no Nordeste - o que coloca outra questão delicada, pois os manguezais são o berço da vida oceânica, o serviço natural de maior valor entre todos, segundo estudo já mencionado neste espaço. Mas a monocultura do camarão compromete gravemente esses ecossistemas e gera conflitos que já estão no Judiciário. Tantos são os problemas, aqui e fora, que está em curso uma campanha mundial para ampliar as áreas marinhas sob proteção legal. Hoje, elas representam apenas 1% da superfície dos mares, enquanto nas áreas terrestres já estão protegidos uns 10%. Um dos objetivos da campanha é proteger áreas importantes para a conservação e reprodução da biodiversidade, principalmente águas profundas, planícies sedimentares no fundo dos oceanos, que se têm revelado excepcionalmente ricas no Censo da Vida Marinha que vem sendo promovido desde o ano 2000 por 300 cientistas de 53 países.

Em algumas áreas, têm sido descobertas até três espécies novas a cada semana e se espera que até 2010 entre 2 mil e 3 mil tenham sido acrescentadas à relação. E vários estudos mostram que o fechamento de uma área por algum tempo, pelo menos, permite forte recuperação de espécies ameaçadas. Todo esse panorama - assim como as complexas questões que estão surgindo nas aqüiculturas em ecossistemas terrestres - sugeriria uma postura cautelosa na política nacional de pesca. Mas o que se vê é o anúncio reiterado de uma forte expansão imediata, que deixa perplexos cientistas dessa área, preocupados com o que os estudos têm revelado. Onde se vai aumentar a produção de pescado? Com quais espécies? Pode-se compreender que, diante da crise de empregos e renda que o País vem atravessando, se queiram encontrar rapidamente nichos de crescimento. Mas isso não pode ser feito à custa de danos irreversíveis e de um provável panorama de exaustão de recursos mais à frente - que seria muito mais grave do que a crise de hoje.