Matéria publicada na Revista Ciência Hoje, Vol. 39, Número 232, de
Novembro de 2006
É difícil imaginar um mundo onde a madeira não esteja presente, uma vez
que ela pode ser empregada das mais diversas formas. Pode ser queimada como
lenha ou, no extremo oposto, ser empregada com fins artísticos. A madeira é,
por exemplo, matéria-prima para a confecção de diversos tipos de instrumentos
musicais e de arcos para instrumentos de corda, como violinos, violoncelos e
outros.
A madeira do pau-brasil (Caesalpinia
echinata) há muito vem sendo utilizada na
fabricação de arcos para instrumentos de corda. No entanto, não se sabe ao
certo por que diferentes amostras, mesmo manufaturadas pelo mesmo artesão,
resultam em arcos de qualidade diferente. Será que essa variação decorre de
diferenças na estrutura da madeira? Outras madeiras brasileiras também poderiam
ser empregadas na confecção de arcos?
Valioso no passado e no
presente
O pau-brasil é uma árvore da Família Leguminosae,
que integra o grande grupo das angiospermas, ou seja, vegetais que produzem
fruto. Registros históricos revelam que, na época do Descobrimento do Brasil, a
espécie era abundante em muitas regiões da costa. Hoje, porém, restam poucos
remanescentes naturais.
Na época colonial, um número incalculável de árvores de pau-brasil foi
abatido e enviado para a Europa. Naquela época, essa madeira era muito valiosa
porque de seu cerne (região mais interna do tronco) era extraída a brasilina (C16H14O5),
substância que, após oxidação, fornece a brasileína
(C16H12O5), corante vermelho natural usado
para tingir tecidos. Como a cor vermelha estava relacionada à nobreza e ao
poder, era intensa a demanda por corantes vermelhos de boa qualidade. Isso fez
com que o pau-brasil fosse intensamente explorado entre os séculos 16 e 19,
quando corantes sintéticos substituíram a brasileína.
Natural das
florestas estacionais litorâneas, que integram a Mata Atlântica, o pau-brasil
era encontrado, na época do Descobrimento, desde o Rio de Janeiro até o Rio
Grande do Norte. Atualmente, restam poucos remanescentes naturais. Mesmo sendo
definida como espécie em perigo de extinção em portaria (006, de 1992) do
Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, a
árvore ainda é alvo de comércio ilegal e vítima da destruição contínua da Mata
Atlântica. Embora só possa ser derrubada em casos especiais, com autorização
prévia, a extração ilegal continua, já que há forte demanda da madeira por
parte dos produtores de instrumentos musicais. Essa procura deve-se às suas
características únicas de ressonância, densidade, durabilidade e beleza, além
da extensão da curvatura, do peso, da espessura e de preciosas qualidades
tonais, que a tornam ideal para a confecção de arcos para violino e outros
instrumentos.
As ameaças ao pau-brasil levaram a esforços de
proteção, realizados por entidades internacionais; e a pesquisas científicas,
desenvolvidas
A versatilidade da madeira
A adequação de uma madeira a uma determinada aplicação depende de suas
propriedades, como densidade, dureza, cor, desenho, odor, trabalhabilidade
(facilidade para ser processada) e outras. Tais propriedades, em última
análise, decorrem do arranjo, do tipo e da proporção das células que a compõem,
além da presença ou não de diferentes substâncias químicas, denominadas
extrativos, secretadas pelas próprias células (óleos, resinas e outros).
Conhecer a estrutura da madeira e seus extrativos permite deduzir os potenciais
usos da mesma.
Em termos anatômicos, a madeira é um conjunto heterogêneo de tipos
celulares com propriedades específicas para exercer funções como condução de
água, sais minerais e hormônios (a seiva ascendente) da raiz até a copa;
armazenamento e transporte de substâncias nutritivas, resultantes da
fotossíntese; e sustentação do próprio vegetal. Os termos xilema secundário e
lenho são sinônimos de madeira.
A madeira divide-se em duas porções: o alburno e o cerne. O alburno,
situado próximo à casca, é a porção funcional quando a árvore está em pé;
através dele se dá a condução da seiva. No cerne, essa
função já foi perdida, e ali são depositados os extrativos, nas paredes e no
interior das células condutoras. São os extrativos que, em geral, conferem ao
cerne uma coloração diferenciada em relação ao alburno e muitas vezes aumentam
a durabilidade natural da madeira. No pau-brasil, essa diferença de cor entre
as duas partes da madeira é bem evidente, mas em muitas espécies ela não
existe.
Como os troncos são cilíndricos, a madeira tem três planos de corte: um
transversal (perpendicular ao eixo do tronco) e dois longitudinais (no mesmo
sentido desse eixo): o tangencial e o radial. As madeiras das árvores do grupo
das angiospermas – a imensa maioria das espécies lenhosas de regiões tropicais
– têm células que compõem estruturas como vasos, parênquima axial, raios e
fibras.
Os vasos, que conduzem a seiva nas angiospermas
e distribuem-se ao longo do tronco, são formados por células sobrepostas, com
paredes lignificadas (a lignina é uma substância que dá rigidez às células
vegetais) e extremidades perfuradas. A quantidade, o tamanho e a disposição dos
vasos desempenham papel importante na determinação das propriedades da madeira.
As células do parênquima axial, situadas junto aos vasos, têm como função
principal armazenar substâncias nutritivas, na forma de amido. Tais células são
menores e têm paredes mais finas do que a dos vasos. Já os raios (ou parênquima
radial), que se estendem da casca até a região central do tronco, atuam na
condução de nutrientes no sentido transversal e em seu armazenamento. Madeiras
com muito parênquima axial ou radial são, em geral, leves e têm baixa
resistência mecânica e pouca durabilidade natural. As fibras, por sua vez,
distribuem-se ao longo do tronco e atuam em sua sustentação. Suas células, em
forma de fuso, têm extremidades afiladas e paredes de espessura variável.
Normalmente, madeiras pesadas têm fibras com paredes muito espessas, enquanto
nas madeiras leves as paredes dessas células são mais finas.
As espécies lenhosas tropicais apresentam uma infinidade de padrões e,
em conseqüência, fornecem variados tipos de madeira, com diversas aplicações.
Algumas madeiras, no entanto, têm propriedades tão específicas para
determinadas aplicações e seu uso é tão consagrado que há enorme resistência à
sua substituição. Elas continuam a ser usadas, independentemente do custo ou da
dificuldade de obtenção. Nesse caso enquadra-se a madeira do pau-brasil,
tradicionalmente empregada na produção de arcos de instrumentos de corda.
Por que o pau-brasil?
Um fato interessante é que arcos feitos pelo mesmo arqueteiro,
com diferentes amostras de pau-brasil, exibem qualidades distintas. Por isso
podem ser encontrados, no mercado especializado, desde arcos de pau-brasil de
alta qualidade, mais caros, destinados a músicos gabaritados, até arcos de
baixo custo, utilizados por amadores e estudantes. Alguns trabalhos científicos
apontam que a quantidade de extrativos presentes no cerne interfere
significativamente na qualidade do arco.
Os principais extrativos encontrados no pau-brasil são a brasilina, já citada, e a protosapanina
B. Esta corresponde a 40% da quantidade total dessas substâncias. Pesquisas já
demonstraram que tais extrativos afetam as propriedades vibracionais da
madeira. Segundo seus autores, o pau-brasil apresenta, em comparação com outras
madeiras, o menor valor de decaimento vibracional –
um arco com baixo decaimento vibracional absorve
menos vibrações quando a corda do instrumento é friccionada e permite ao músico
“sentir” a fricção da crina com a corda, facilitando o seu manuseio. Os baixos
valores de decaimento vibracional do pau-brasil, segundo
estudos, podem decorrer da grande quantidade de brasilina
e protosapanina B nele presentes.
No arco do pau-brasil, acredita-se também que variações na própria
estrutura da madeira desempenhem papel fundamental. Seguindo esse raciocínio, a
análise comparativa da madeira de diferentes amostras de pau-brasil pode ajudar
a esclarecer o porquê das variações na qualidade dos arcos.
A madeira do pau-brasil
Para avaliar as variações estruturais entre madeiras de pau-brasil de
diferentes origens, comparamos sete amostras (com cerca de 1
cm3) obtidas no ambiente natural e em xilotecas
(coleções de madeiras identificadas e registradas). As quatro amostras de
árvores vivas foram coletadas de modo não-destrutivo, retirando-se pequenos
pedaços do tronco, a
As amostras foram amolecidas por cozimento em água e cortadas com um
aparelho capaz de obter fatias muito finas. Algumas,
depois de descoloridas com água sanitária, receberam
corantes que facilitaram a observação das células e outras foram mantidas com a
cor natural. A observação dessas seções em microscópio,
permitiu visualizar detalhes da anatomia da madeira (vasos, parênquima
axial, raios e fibras). O estudo foi desenvolvido com o apoio financeiro da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP.
A propriedade física mais importante da madeira é a densidade, que pode
afetar inclusive outras propriedades. Altas densidades estão relacionadas à
baixa freqüência dos vasos que transportam a seiva. A freqüência, o diâmetro e
o conteúdo (entre eles os extrativos) dos vasos determinam variações na
quantidade dos espaços vazios na madeira e, portanto, em sua densidade. A
quantidade de células do parênquima axial e seu padrão de distribuição também
interferem na densidade e em outras propriedades da madeira, como a
durabilidade. A madeira do pau-brasil de melhor qualidade para a fabricação de
arcos de violino precisa ter, comparativamente, menor freqüência de vasos e
menor quantidade de parênquima axial.
A estratificação das células também é diferente nas amostras dessa
madeira: em algumas os raios organizam-se em camadas horizontais (estratos)
regulares e em outras há irregularidades. A estratificação confere à madeira um
aspecto homogêneo, o que sugere que sua presença favorece a qualidade do arco.
Quando as fibras, os vasos e o parênquima axial são retilíneos, com
orientação paralela ao eixo do tronco, diz-se que a madeira tem grã linheira, direita ou regular. Se esses elementos não mantêm
essa orientação, a grã é dita irregular ou ondulada. A grã afeta
significativamente a velocidade de propagação das
ondas sonoras na madeira, influenciando suas propriedades de ressonância. São
evidentes, nas amostras, variações na grã. Em algumas, os constituintes
verticais do lenho, em especial as fibras e o parênquima axial, estão dispostos
de forma retilínea em relação ao eixo do tronco; em outras a distribuição é irregular.
A madeira usada em um arco de violino de ótima qualidade deve apresentar grã
direita.
Outra característica de interesse é a quantidade, na madeira, de
cristais prismáticos – depósitos, em especial de
oxalato de cálcio – encontrados principalmente em células parenquimáticas.
Esses cristais afetam a trabalhabilidade das
madeiras, dificultando seu processamento devido ao efeito abrasivo que exercem
nos dentes das serras e em outros equipamentos. Em diferentes amostras de
pau-brasil também é observada grande variação na quantidade desses cristais.
Arcos de outras madeiras
Como é grande a variedade de madeiras disponíveis no mercado brasileiro,
outras espécies vêm sendo testadas para fabricação de arcos. Entre elas
destacam-se leguminosas como pau-ferro (Caesalpinia
ferrea), gombeira
(Swartzia aptera)
e pau-santo (Zollernia paraensis);
moráceas como pau-cobra (Brosimum guianense) e pau-rainha (Brosimum
rubescens); e sapotáceas como a maçaranduba (Manilkara elata).
Encontrar a madeira ideal para a confecção de arcos de violino depende
de uma avaliação baseada em cinco parâmetros: 1 – trabalhabilidade;
2 – orientação do corte; 3 – textura do conjunto dos elementos celulares axiais
e grã; 4 – tamanho e posição dos defeitos da madeira (nós, microtrincas,
pequenos orifícios feitos por brocas, cupins e outros organismos); e 5 – dureza (teste geralmente realizado pelo arqueteiro de forma manual). Levando-se em conta esses
aspectos, as madeiras consideradas de alta qualidade (“ouro”) devem ser duras
(o que depende principalmente da quantidade e disposição das diferentes
células), cortadas nos sentido radial do caule, sem defeitos e com grã linheira ou regular. As de qualidade inferior (“prata” e
“bronze”) têm exigências menores quanto a esses parâmetros.
Apenas esses parâmetros, porém, não são suficientes para eleger uma
madeira como substituta do pau-brasil. É preciso considerar a densidade e as
características anatômicas das espécies alternativas. Essas madeiras (o
pau-brasil e as seis citadas) apresentam densidade próxima ou maior que
Apenas com base na estrutura anatômica, porém, não é possível determinar
se amostras dessas madeiras (inclusive a do
pau-brasil) fornecerão arcos de qualidade maior ou menor, já que outros fatores
também interferem no produto final. Entre esses fatores estão os tipos e a
quantidade de extrativos; o teor de lignina e características próprias da
parede das células. No entanto, as diferenças nos vasos, no parênquima e na
orientação de fibras e raios, além da quantidade de cristais, devem ser
avaliadas quando se busca responder por que a qualidade do arco varia para
diferentes amostras da mesma madeira. Deve-se considerar ainda a sensibilidade,
a experiência e a “arte” do arqueteiro. Sua
capacidade de aproveitar ao máximo o potencial do material que utiliza tem um
importante papel na transformação da madeira bruta em arcos com beleza e
qualidade.