Por Felipe A. P. L. Costa em
05/07/2011 na edição 649
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/primatas-antropoides-ou-hominideos
Qual dos seguintes termos descreve melhor a
posição que a espécie humana ocupa na escala zoológica: primata, antropoide
ou hominídeo?A
pergunta, que pode soar estranha ao leitor familiarizado com a sistemática
biológica, me veio à cabeça após a leitura de dois artigos sobre a história
evolutiva dos primatas, ambos publicados na prestigiosa Ciência Hoje
On-line, a saber: “Mais um ramo em nossa árvore evolutiva”, de
minha autoria (no ar desde 18/10), e “Nova pista sobre a origem dos antropoides”,
de Thaís Fernandes (no ar desde 27/10).
Como os termos “primata”,
“antropoide” e “hominídeo” aparecem repetidas vezes
em um ou ambos os artigos, sem terem sido, no entanto, claramente definidos,
surgiram alguns mal-entendidos. Alguns leitores parecem ter ficado com a
impressão de que o artigo mais recente (doravante referido como artigo 2) seria uma atualização ou mesmo uma correção do que
apareceu antes (artigo 1). Tal interpretação, no entanto, não se justifica.
Ainda que ambos os artigos abordem aspectos relacionados à história evolutiva
dos primatas, um trata de restos fósseis (idade estimada entre 1,7 e 2 milhões
de anos) de um primata
hominídeo, enquanto o outro lida com restos fósseis (38-39 milhões
de anos) de quatro espécies de primatas não-hominídeos(três
espécies de linhagens extintas de haplorrinos e uma
espécie de uma linhagem de estrepsirrino lorisiforme – ver adiante).
De resto, vale ressaltar o seguinte: embora
as espécies viventes que são classificadas em um mesmo grupo taxonômico possam
ser genericamente rotuladas de “parentes próximos”, não costuma haver entre
elas uma relação direta de ancestralidade e descendência. No caso dos seres
humanos, por exemplo, isso significa dizer que, embora todas as demais espécies
viventes de primatas possam ser genericamente rotuladas de “nossos parentes
mais ou menos próximos”, nenhuma delas representa um “ancestral” da espécie
humana.
Os primatas
Em termos puramente zoológicos, todas as
espécies (viventes ou fósseis) conhecidas de primatas estão reunidas em uma
única ordem de mamíferos. O nome científico da ordem (Primates)
foi cunhado por Carl von Linné
(1707-1778) – também conhecido como Carolus Linnaeus ou simplesmente Lineu –, o criador da nomenclatura
biológica que usamos ainda hoje. O termo deriva da palavra latina primus,
que significa “primeiro” ou “em primeiro lugar”, e foi usado para designar o
grupo que, na opinião do autor, ocuparia a posição mais “alta” dentro do reino
animal.
Ao longo da vida, Lineu descreveu e nomeou
formalmente pouco mais de 40 espécies de “primatas”, as quais foram arranjadas
por ele em quatro “gêneros”: Homo (seres humanos e chimpanzés), Simia
(macacos do Novo e Velho Mundo), Lemur (“prossímios” e um lêmure-voador,
este transferido posteriormente para a ordem Dermoptera)
e Vespertilio (morcegos, colocados depois em uma ordem
própria, Chiroptera).
Desde então, já foram descritas e nomeadas
outras espécies, de sorte que a ordem conta hoje com cerca de 380 espécies, a
maioria encontrada exclusivamente em hábitats
tropicais. O número de espécies fósseis conhecidas é ligeiramente superior, com
um detalhe importante: a diferença em favor das espécies fósseis deve continuar
aumentando, na medida em cedo ou tarde “todas” as espécies viventes serão
descritas (ou desaparecerão), enquanto restos fósseis de espécies extintas
continuarão a ser encontrados.
Como um grupo, os primatas têm sido objeto
de estudos e preocupação por parte de muitos cientistas, alguns dos quais
trabalham na reconstituição da filogenia de todas as espécies (viventes e
fósseis) conhecidas do grupo. Há um motivo especial para que o trabalho desses
estudiosos chame tanto a atenção do público: reconstituir a história evolutiva
desses animais implicaria, entre outras coisas, em um melhor conhecimento da
história evolutiva de nossos ancestrais imediatos e, quem sabe, de nossa
própria espécie.
Relação de pertinência
Na opinião dos estudiosos, os sistemas de
classificação devem ser construídos de modo a refletir o que conhecemos a
respeito da filogenia das espécies que integram as diferentes linhagens de
seres vivos (primatas, mamíferos, cordados etc.). Levando em conta esse
princípio, eis o resumo de uma possível classificação para os vários subgrupos
(acima do nível de família) em que estão arranjadas as 376 espécies viventes da
ordem Primates:
1. Subordem Strepsirrhini: sete famílias; 23
gêneros e 88 espécies.
1.1. Infraordem Lemuriformes:
lêmures e espécies próximas; quatro famílias; 59 espécies.
1.2. Infraordem Chiromyiformes:
ai-ai; uma família; uma espécie. (Alguns autores incluem o ai-ai na infraordem Lemuriformes.)
1.3. Infraordem Lorisiformes:
lórises, gálagos e espécies
próximas; duas famílias; 28 espécies.
2. Subordem Haplorrhini: seis famílias; 46
gêneros e 288 espécies.
2.1. Infraordem Tarsiiformes:
társios; uma família; sete espécies.
2.2. Infraordem Simiiformes:
antropoides; cinco famílias; 281 espécies.
2.2.1. Parvordem Platyrrhini:
macacos do Novo Mundo; duas famílias (alguns autores subdividem em cinco
famílias); 128 espécies.
2.2.2. Parvordem Catarrhini:
macacos do Velho Mundo e hominídeos; três famílias; 153 espécies.
Um exame desse esquema de classificação
mostra que os termos “hominídeos”, “antropoides” e
“primatas” estão associados a categorias taxonômicas de níveis hierárquicos
distintos, havendo entre elas uma relação de pertinência. Assim, a
família dos hominídeos
(Hominidae), que abriga hoje sete espécies viventes
(ver adiante), integra um grupo maior, a infraordem
dos antropoides(Simiiformes),
a qual, por sua vez, é uma das duas infraordens que
integram a subordem dos haplorrinos (Haplorrhini). Esta última é uma das duas subordens que
formam a ordem dos primatas.
Os valores numéricos citados mostram que
cerca de três quartos de todas as 376 espécies são antropoides,
contra um quarto de primatas não-antropoides. Das 281
espécies de antropoides, a grande maioria (274) é de
não-hominídeos (macacos do Novo e Velho Mundo), enquanto apenas sete espécies
viventes (duas espécies de orangotangos, duas de gorilas, duas de chimpanzés e
os seres humanos) podem ser apropriadamente chamadas de hominídeos.
Parentes sim, ancestrais
não
Podemos dizer então que todos os hominídeos
são antropoides, assim como todos os antropoides são primatas. O contrário é que não é verdade:
nem todos os antropoides são hominídeos, assim como
nem todos os primatas são antropoides. Nós, seres
humanos, somos, ao mesmo tempo, hominídeos, antropoides
e primatas – uma afirmação que serve como resposta à pergunta do título.
Em uma árvore filogenética completa e
perfeita – sonho que talvez jamais venha a ser concretizado
–, nós seríamos capazes de identificar a linhagem que deu origem a todos
os hominídeos. Recuando ainda mais no tempo, seria possível reconhecer o
ancestral de todos os antropoides, assim como o de
todos os primatas. Continuando a retroceder, conheceríamos o ancestral de todos
os mamíferos, o de todos os animais e, por fim, quem
sabe, o último ancestral comum a todos os seres vivos.
Todos os demais primatas (viventes ou
fósseis) podem ser genericamente referidos como “nossos parentes mais ou menos
próximos”, afinal partilhamos de ao menos um ancestral comum com todos eles.
Não faz sentido, porém, chamar qualquer outra espécie vivente – seja de
primata, antropoide ou hominídeo – de “nosso
ancestral”. Nossos ancestrais já desapareceram e, embora seguramente
pertencessem a uma linhagem de hominídeos (ou a mais de uma, de acordo com
alguns estudiosos), a identidade específica deles ainda não foi devidamente
estabelecida.
***
[Felipe A. P. L. Costa é
biólogo, autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)]