Reuso de água é incipiente no Brasil

A prática do reuso ainda espera para ser institucionalizada e integrada aos planos de proteção e desenvolvimento de bacias hidrográficas

A água utilizada para preparar o suco que tomamos hoje no café da manhã pode ser a mesma que já passou pelo estômago de Júlio César, banhou Cleópatra, evaporou das corredeiras do Tietê, moveu as turbinas de Itapu ou que tenha desaguado no Atlântico, levada pelas vagas fundamentalistas do São Francisco, a jusante de Xingó. Ela é parte dos 1.386 quilômetros cúbicos da mesma água que vem circulando na terra nos últimos 500 milhões de anos. É a única da qual dispomos e da qual sempre dispusemos.

O milagre da conservação é perpetuado pelo ciclo hidrológico que, através da evaporação, condensação e precipitação faz com que a água do nosso planeta seja um recurso renovável. Quando reciclada através de sistemas naturais, se constitui em um recurso limpo e seguro até que seja, através da atividade antrópica, deteriorada a diferentes níveis de poluição.

Nas regiões áridas e semi-áridas, a água se tornou um fator limitante para o desenvolvimento urbano, industrial e agrícola. Planejadores e entidades gestoras de recursos hídricos, procuram, continuamente, novas fontes de recursos para complementar os escassos recursos hídricos ainda disponíveis.

No polígono das secas do nosso Nordeste, a dimensão do problema é ressaltada por um anseio, que já existe há 75 anos, para a transposição do São Francisco, visando o atendimento da demanda dos estados não riparianos da região semi-árida, situados ao norte e a leste de sua bacia de drenagem.

Diversos países do oriente médio, onde a precipitação média oscila entre 100 e 200 milímetros por ano, contam apenas com alguns poucos rios perenes e pequenos reservatórios de água subterrânea, geralmente localizados em regiões montanhosas, de difícil acesso. A água potável é proporcionada através de sistemas de dessalinização da água do mar e, devido à impossibilidade de manter uma agricultura irrigada, mais de 50% da demanda de alimentos é satisfeita através da importação de produtos alimentícios básicos.

O fenômeno da escassez não é, entretanto, atributo exclusivo das regiões áridas e semi-áridas. Muitas regiões com altos índices pluviométricos, mas que geram volumes insuficientes para atender a demandas excessivamente elevadas, também experimentam conflitos de usos e sofrem restrições de consumo, que afetam o desenvolvimento econômico e a qualidade de vida. Na Região Metropolitana de São Paulo, por exemplo, a falta crônica de água é atribuída à uma falha de planejamento dos jesuítas. Eles são acusados de terem escolhido este planalto irrigado com as poucas águas das cabeceiras do Tietê, para abrigar 16 milhões de habitantes e um dos maiores complexos industriais do mundo.

Como conseqüência, estabeleceu-se a prática da busca incessante de recursos hídricos complementares de bacias vizinhas, que se traduzem em aumentos consideráveis de custo, além dos evidentes problemas legais e político-institucionais associados. Esta prática tende a se tornar cada vez mais restritiva, face à conscientização popular, arregimentação de entidades de classe e ao desenvolvimento institucional dos comitês de bacias afetadas pela perda de recursos hídricos valiosos e insubstituíveis.

Nesse cenário, o conceito de "substituição de fontes" aparece como a alternativa mais plausível para atender a demandas menos restritivas, liberando águas de melhor qualidade para fins mais nobres, como o abastecimento doméstico. Em 1958, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, formulou uma política de gestão de áreas carentes de recursos hídricos que suporta este conceito: "a não ser que exista grande disponibilidade, nenhuma água de boa qualidade deve ser utilizada para usos que toleram águas com qualidade inferior". Este conceito suporta a prática do reuso, estabelecendo, implicitamente, que os efluentes para reuso não necessitam serem tratados a níveis de qualidade superiores aos mínimos necessários para os fins específicos a que se destinam. Dentro da visão do reuso de água, o homem desenvolveu uma metodologia de imitação grosseira, mas efetiva do ciclo hidrológico, tratando efluentes domésticos e industriais para serem reutilizados, de maneira benéfica, na irrigação, em processos industriais e para múltiplas finalidades urbanas, particularmente aquelas classificadas como não potáveis. Embora os sistemas de purificação, engendrados pelo gênio humano não contenham a dimensão ecológica e a sustentabilidade do ciclo hidrológico, eles permitiram o desenvolvimento de um novo recurso, atribuindo uma nova dimensão econômica à "commodity" do século 21.

Reuso e conservação da água se constituem, hoje, nas palavras chave de maior importância, em termos de gestão de recursos hídricos. A prática do reuso, ainda incipiente no Brasil, ainda espera para ser institucionalizada e integrada aos planos de proteção e desenvolvimento de bacias hidrográficas. Para isso, é necessário, antes de mais nada, o passo fundamental que restringe a grande maioria dos processos de modernização nacional - vontade política, na esfera mais elevada dos tomadores de decisão!

Ivanildo Hespanhol é professor de engenharia ambiental do Departamento de Engenharia Hidráulica e Sanitária da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo