SBPC - JC e-mail 2727, de 16 de Março de 2005.
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‘Ciência sem ética e prudência é violência’, afirma Eliane Azevedo
 
A geneticista, ex-reitora da UFBA e professora da Universidade Estadual de Feira de Santana alerta para os riscos do uso imprudente da ciência.

Katherine Funke escreve para o ‘Correio da Bahia’ (Salvador, 12/3/2005):

Ao falar em genoma, células-tronco e clonagem, a médica geneticista Eliane Elisa de Souza e Azevedo usa simultaneamente conceitos como dignidade, ética e direitos humanos.

Mais que simples retórica, as expressões expressam a diretriz do trabalho desta cientista baiana, natural de Tanquinho (BA), que completa 69 anos exatamente hoje.

Às vezes solitária num meio onde impera a sedução das manchetes noticiosas e o marketing da indústria da saúde, Eliane tem posições firmes em relação aos princípios éticos das pesquisas com seres humanos.

Por essa firmeza, integra a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e há cerca de 40 dias passou a representar a Conep na Comissão de Uso e Acesso ao Genoma.

Professora da Universidade Estadual de Feira de Santana, onde coordena o Centro de Estudos e Pesquisas, a ex-reitora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) tem relevante produção científica, como o livro ‘O direito de vir a ser após o nascimento’, em que reflete sobre como o potencial desenvolvimento de um indivíduo se choca com problemas sociais, como fome e desnutrição.

Nesta entrevista, a pesquisadora alerta para a violência do uso imprudente da ciência e outras questões às quais a humanidade tem preferido fechar os olhos, em nome do sonho da perfeição da espécie.

Eis a entrevista:

A senhora já integra a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e agora foi indicada para Comissão sobre Acesso e Uso do Genoma Humano, ambas no Ministério da Saúde. O que são essas comissões?

- A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) é o centro de um sistema de cerca de 400 outras comissões denominadas comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) existentes em todo o território nacional. Esse conjunto de comissões constitui o sistema Conep-CEP, cuja finalidade é avaliar aqui no Brasil os aspectos éticos das pesquisas feitas em seres humanos, no sentido de proteger as pessoas pesquisadas, impedindo que haja abuso. Esse sistema funciona no Brasil desde 1996. Toda pessoa, seja paciente ou não, que seja incluída em qualquer tipo de pesquisa, deverá perguntar ao pesquisador se a sua pesquisa já foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa. Dessa forma, a pessoa estará mais protegida contra exageradas promessas de benefícios e reais riscos de malefícios.

E a comissão sobre acesso e uso do genoma humano?

- Ela é composta por representantes de vários órgãos da área da saúde e da área jurídica. Nela, sou a representante da Conep. O trabalho desta comissão é mostrar caminhos para proteger os direitos da pessoa humana em relação ao uso de resultados de análise de seu genoma. Isso porque o DNA de cada um de nós contém informações em relação à saúde: informações que podem ser usadas contra a própria pessoa, criando estigmas, preconceitos, dificuldade de emprego, de seguro saúde etc.

Que mecanismos norteiam a ética da pesquisa de uso do genoma com seres humanos no Brasil?

- Existem princípios gerais contidos nas declarações universais, como a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, da Unesco, editada em 1997, assim como existem diretrizes brasileiras como a Resolução 340/04, da Comissão Nacional de Saúde, que estabelece as normas éticas para a pesquisa em genética humana. Esses são os principais documentos norteadores, embora existam outros que direta ou indiretamente estão relacionados à questão ética do genoma humano. A inspiração de todos esses documentos é a preservação da dignidade humana frente aos avanços da ciência e da tecnologia. Todos desejam a ciência para servir às pessoas, e não ao contrário. A ciência na área médica, na biologia, na genética em especial, avançou de tal forma que, se não posta em prática sem os devidos cuidados éticos, sem ter em mente a proteção da dignidade humana, poderá ser mais uma ameaça que um benefício.

A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e/ou os Comitês de Ética em Pesquisa podem impedir oficialmente uma pesquisa em qualquer instituição pública ou privada?

- A Conep e os CEPs avaliam os projetos de pesquisa com o olhar da ética, buscando proteger as pessoas pesquisadas. Essas avaliações são sempre feitas por grupos de pessoas e as decisões também são tomadas em grupos. Após cada avaliação a pesquisa será aprovada, posta com pendências ou não aprovada. É muito freqüente a pesquisa ser posta com pendências. Isso é, existem pontos éticos que o pesquisador(a) precisa esclarecer ou alterar em seu projeto. O pesquisador(a) tem 60 dias para proceder essas alterações e reenviar o projeto para a segunda avaliação. Se houver atendimento satisfatório, o projeto será aprovado. Uma vez aprovado, o pesquisador(a) deverá enviar ao CEP relatórios anuais de sua pesquisa e também um relatório final. Esses relatórios são avaliados pelo CEP a fim de verificar se no desenvolver da pesquisa houve realmente proteção às pessoas pesquisadas. Considerando que a Conep-CEP tem papel educador, raramente uma pesquisa é reprovada. Sempre se procura questionar o pesquisador(a) no sentido de que ele(a) perceba os desvios éticos de sua pesquisa e a reajuste. Isso é comum. A grande maioria dos pesquisadores demonstra-se agradecida ao cuidadoso trabalho de revisão feito pelos membros dos CEPs, pois as modificações sugeridas sempre melhoram a qualidade da pesquisa.

Mas um pesquisador pode levar adiante um trabalho reprovado por desrespeitar princípios éticos?

- Quando um projeto não é aprovado, mesmo que o pesquisador(a) faça de qualquer forma, ele ou ela terá dificuldade em publicar essa pesquisa e até mesmo de apresentar os resultados em congressos científicos de boa qualidade. Isso porque, tanto as boas revistas científicas quantos os bons congressos estão, no mundo todo, exigindo dos pesquisadores a comprovação de que sua pesquisa foi aprovada por um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).

Quais são os riscos e benefícios para a humanidade na realização de clonagem reprodutiva humana?

- Não existem benefícios advindos da clonagem humana. Do ponto de vista ético é moralmente inaceitável; do ponto de vista científico, um desastre biológico com evidentes comprometimentos à saúde.

E a clonagem humana para fins terapêuticos?

- Também não tem sentido ético. Não existem justificativas morais para criar uma vida humana com a finalidade de sacrificá-la para ser transformada em remédio. O respeito à vida humana não pode admitir exceções. Correremos o risco de perder os limites da dignidade e da proteção a cada ser humano como membro da espécie. E como espécie humana, somos uma unidade. Não importa por quem os sinos dobram, é um de nós que se vai...

Qual sua opinião sobre a forma como foi aprovada a pesquisa do uso de células-tronco?

- No percurso das discussões foram cometidos dois graves tropeços éticos. Primeiro, ocorreu uma construção de deslumbramento pela cura fácil. Esse deslumbramento perdeu a ética da responsabilidade, invadiu o imaginário das pessoas e alavancou esperanças sem a adequada evidência científica. O elenco de doenças citadas como passíveis de tratamento, materializava o inexistente, isso é, o sonho, o desejo. A ciência saiu do seu espaço de convencer por evidências e travestiu-se de convencimento por emoções e argumentações políticas. Além disso, omitiu-se, sistematicamente, a relação entre células-tronco embrionárias e desenvolvimento de cânceres. Exaltaram-se os supostos benefícios e não informaram os riscos já conhecidos. Em segundo lugar, faltou a percepção antropológica do valor da vida. Confundiu-se o direito laico de defesa da vida humana com radicalismo confessional e partiu-se para o confronto entre religião e ciência, tentando depreciar a primeira. Não perceberam que não existem povos sem fundamentos morais em relação à vida e nem culturas sem religiosidade. Em qualquer sociedade, as religiões estão intrínsecas à história dos povos. Ciência e religião foram e continuaram sendo pilares fundamentais na história da humanidade. Repetir erros medievais e buscar o confronto é inaceitável à ciência moderna. Assim como é inaceitável à ciência moderna a dissimulação por re-definições (montinho de células; início da vida aos 14 dias etc.). Finalmente, fica a dúvida se, em verdade, ocorreu uma aprovação moralmente consciente. Como geneticista, estou convencida de que a vida individual de cada um de nós é biologicamente iniciada no momento da fertilização. A partir deste momento nada se acrescenta e nada se retira de informação genética (genoma). Ao morrer, mesmo se de extrema velhice, ainda teremos o mesmo genoma que adquirimos no momento da fertilização.

Os testes com seres humanos, relativos a células-troncos embrionárias, ainda são perigosos. Como resolver essa questão sem ferir a integridade humana e o progresso da pesquisa?

- Não podemos atropelar a dignidade humana em nome do progresso da ciência. Infelizmente, muitas crueldades já foram cometidas em nome da ciência, não apenas nas experiências nazistas e japonesas em épocas de guerra, mas também em tempo de paz nos EUA em passado recente. O reconhecimento internacional de que as pesquisas com seres humanos devem ser, antecipadamente, avaliadas e aprovadas por Comitês de Ética em Pesquisa não aconteceu sem justas razões. Por trás de muitas pesquisas existem bilionários interesses de mercado. Nada disso é segredo. As denúncias, os livros, os artigos, estão aí para quem quiser ler. Neste momento em que respondo a esta entrevista, vejo em minha estante Cobaias humanas, de Andrew Golizek, e Trevas do ElDorado de Patrick Tierney, ambos já publicados em português. A mensagem é: ciência sem ética e prudência é violência.