Trilhas ecológicas: estreitas, forradas, retas
http://www.lainsignia.org/2006/abril/ecol_008.htm
Felipe A. P. L.
Costa (*)
La
Insignia. Brasil, abril de 2006.
O
número de visitantes que habitualmente freqüentam áreas naturais tem crescido
ano após ano em todo o mundo. As áreas públicas e, em
especial, os parques continuam atraindo a grande maioria desses visitantes.
No caso brasileiro, o aumento da visitação serviu para revelar ao público uma
série de problemas estruturais em nosso sistema de unidades de conservação,
No Brasil, unidades de
conservação podem ser de uso direto (chamadas também
de unidades de uso sustentável) ou indireto (ou de proteção integral). Nas
primeiras, populações humanas podem morar, explorar e/ou cultivar recursos
locais (madeiras, frutos, animais de caça e pesca
etc.). São exemplos desse grupo as áreas extrativistas, áreas
de proteção ambiental e florestas nacionais. Unidades de uso indireto, por sua vez, são criadas para atender
objetivos não-exploratórios,
A presença
humana em qualquer tipo de unidade de conservação é quase sempre uma fonte de
conflito, mesmo no caso de visitantes temporários. Os problemas enfrentados
pelos administradores de um parque, por exemplo, são variados e numerosos, indo
desde a presença de visitantes mal-educados (barulhentos, pilhadores de
material biológico etc.) até problemas de superlotação, passando por coisas
Matando a
galinha dos ovos de ouro
No caso dos parques, uma
parcela importante dos conflitos tem a ver com a necessidade de se controlar o número
de visitantes. Quer dizer, mesmo se todos os visitantes fossem
"suíços" (i.e., nada de deixar lixo jogado pelo chão ou dar restos de
comida aos animais, nada de tirar lascas ou fazer marcas no tronco das árvores,
nada de roubar orquídeas ou bromélias etc.), ainda assim os administradores
precisariam encontrar resposta para uma questão fundamental: qual o número
máximo de visitantes que um parque pode receber sem mostrar sinais de
degradação?
A chamada capacidade de
suporte recreativa - uma adaptação do conceito ecológico mais geral de
capacidade de suporte - é justamente o número máximo de visitantes que um
parque pode receber, durante determinado período de
tempo, sem mostrar sinais evidentes de degradação,
Nenhum parque deveria ficar
exposto a uma sobrecarga de visitantes, sob pena de
sofrer um acelerado processo de degradação. Permitir que isso ocorra é
Evitar os
riscos de degradação não é tarefa difícil ou complicada. Mesmo quando os
administradores não contam com estudos técnicos que auxiliem na
fixação da capacidade de suporte dos trechos de um parque abertos à visitação,
eles ainda podem lançar mão de medidas que funcionariam
Parques e
bibliotecas
Há quem pense que a visitação
seja uma oportunidade de promover a educação pública e
com isso reverter ou ao menos minorar os impactos gerados pelas nossas
atividades no interior do próprio parque. Os visitantes
poderiam ser orientados a perceber melhor, por exemplo, o funcionamento e a
fragilidade de sistemas ecológicos responsáveis pela manutenção da vida em
nosso planeta. A despeito dessa perspectiva otimista, não são poucos os
visitantes e mesmo administradores que vêem os parques por um ângulo diferente:
uma mistura de zoológico, circo e o quintal de casa. A maioria dos visitantes é
composta tipicamente por moradores de centros urbanos, gente que vê na visitação um entretenimento ou apenas a chance de
relaxar, saindo um pouco de uma rotina de vida cansativa e alienante. Entre os
visitantes, não são poucos os que tendem a agir
Ocorre que
parques não são circos, nem zoológicos, muito menos o quintal de casa. Na verdade, parques são muito
mais parecidos com bibliotecas, pois ambos abrigam tesouros preciosos e de
valor inestimável - e quase sempre imperceptíveis aos olhos do visitante. Lugares assim deveriam ser protegidos e reverenciados por todos
nós, a despeito da quantidade de visitantes que recebem. Digo isso
porque muitos de nossos parques vivem sob a ameaça
permanente do corte de verbas. O argumento de governantes e burocratas nesses
casos é que os parques deveriam ter "viabilidade econômica", gerando
seu próprio orçamento. Ora, o objetivo da visitação em áreas
públicas tem a ver principalmente com educação e não com rentabilidade. Ou será que algum de nós em sã consciência levantaria a voz contra
as bibliotecas públicas simplesmente porque elas não estão dando lucro?
Deveríamos encarar nossos parques (e outras unidades de conservação) por aquilo
que eles realmente são: gigantescas bibliotecas vivas.
Pode parecer exagero,
principalmente para quem não está familiarizado com o assunto, mas chegamos ao ponto em estamos por conta de uma sucessão
de idéias e posições grotescas. Ao longo dos anos, doses generosas de demagogia
política e escassez crônica de verbas e pessoal técnico qualificado criaram
entre nós um caldo cultural rarefeito, mas perigoso, no qual as prioridades
estão claramente invertidas. Quantos burocratas e administradores não estão
hoje mais preocupados em agradar os visitantes e, por tabela, a chefia, do que efetivamente em proteger as características
primitivas dos parques? Ora, quando "agradar" o visitante passa a ser
prioridade, até mesmo administradores bem-intencionados podem começar a cometer
barbeiragens grosseiras. No que segue, apresento exemplos de
Uma perspectiva
ecológica para as trilhas
Observar o estado das trilhas
de um parque pode fornecer pistas sobre o que se passa entre a
administração e os visitantes de um parque [5]. Cabe enfatizar que, de um ponto
de vista estritamente ecológico, a criação e manutenção das trilhas de um
parque devem provocar o menor impacto possível - em termos de destruição de
microhábitats, remoção de serapilheira, perda de vegetação em crescimento,
depauperação do banco de sementes etc. Com isso em mente, podemos fazer uma avaliação
rápida dos impactos negativos ao longo das trilhas, observando três de seus
atributos: largura (trilhas largas ou estreitas), cobertura (trilhas limpas ou
forradas) e traçado (trilhas sinuosas ou retas).
Em primeiro lugar, devemos
observar a largura: as trilhas utilizadas pelos visitantes não devem ser
largas; ao contrário, devem ser estreitas. Trilhas com 1-2 m de largura são
mais do que suficientes para o trânsito de visitantes a pé. Isso não significa
dizer que o parque não deva contar com um número mínimo de trilhas mais largas
(2-4 m), para uso por veículos de apoio em casos de
emergência (e.g., incêndios ou acidentes com visitantes). Em todo caso, é
importante notar: trilhas largas implicam na remoção
de uma parcela proporcionalmente maior de vegetação. Além disso, trilhas largas
favorecem a entrada de grupos numerosos ou mesmo de
visitantes motorizados, aumentando ainda mais os riscos de degradação (e.g.,
compactação e erosão do solo).
Em segundo lugar, as trilhas
devem permanecer forradas com serapilheira durante o
ano inteiro. Essa recomendação pode parecer óbvia, mas pelo jeito muitos
administradores ainda não entenderam a importância de medidas
Em se
tratando da cobertura de trilhas, há idéias ainda mais esdrúxulas em
circulação.
Uma delas diz respeito à conveniência de cimentarmos ou não
as trilhas no interior de um parque. Certa vez, participei de uma
discussão na qual dois profissionais defendiam a
construção de calçadas cimentadas (nenhum dos quais, por incrível que pareça,
era engenheiro ou arquiteto), levantando para isso argumentos com base em uma
suposta preocupação com o bem-estar e segurança dos visitantes. Discordei, mas felizmente os dois estavam em minoria. Hoje, passados
mais de 10 anos, minha interpretação para uma posição tão surpreendente é a de
que o caso envolvia uma infeliz combinação: de um lado, um apego excessivo e
inercial ao mundo urbanizado e, de outro, uma boa dose de desconhecimento, medo
e desprezo pelo mundo selvagem e a vida ao ar livre [7].
Por fim, talvez a menos óbvia
das três recomendações: sempre que possível, as trilhas que cortam um parque
devem ser retas.
|
A menor distância (i.e., o
menor percurso) entre esses dois pontos é o segmento de reta, AB, conforme o
esquema abaixo:
|
Qualquer outra trajetória
resultará em percursos necessariamente mais longos,
|
É possível mostrar que ACDB
> ACB > AB. Nesse caso, podemos concluir que a distância percorrida entre
A e B aumenta em função do grau de sinuosidade do caminho que liga os dois
pontos. Em termos ecológicos, isso equivaleria a dizer o seguinte: o impacto
negativo (em termos de remoção de vegetação etc.) das trilhas de um parque
aumenta com o grau de sinuosidade do traçado delas. O procedimento menos danoso
envolveria, portanto, estabeler um sistema de trilhas composto majoritariamente
por segmentos de retas.
Notas
(*) Biólogo meiterer@hotmail.com, autor do livro Ecologia, evolução
& o valor das pequenas coisas (2003).
1. Ver artigo
"Recursos naturais, terras públicas e unidades de conservação"
http://www.lainsignia.org/2003/agosto/ecol_008.htm.
2. Sobre a situação dos parques, ver Drummond, J. A. 1997. Devastação e
preservação ambiental no
3. As maiores ameaças ao bom funcionamento e à propria
integridade de nossas unidades de conservação muitas vezes surgem de onde menos
deveríamos esperar: do próprio aparelho de Estado. Os exemplos aqui são
variados, incluindo desde guardas florestais que caçam até diretores que vendem
madeira extraída da área, passando por policiais
diretamente envolvidos com o contrabando de animais.
4. Ver artigo "Forrando trilhas com serapilheira"
http://www.lainsignia.org/2002/noviembre/ecol_016.htm.
5. Boa parte das preocupações expressas neste artigo fazem hoje parte do
cotidiano de diversos profissionais, conforme testemunha a realização do I
Congresso Nacional de Planejamento e Manejo de Trilhas
http://www.infotrilhas.com/congresso/index.htm, previsto para ocorrer de 07 a
11/11/2006, na cidade do Rio de Janeiro.
6. Ver Costa, F. A. P. L. 2000. Nova em folha. Ciência
Hoje 161: 54; na rede, ver o artigo mencionado na nota
4.
7. Uma versão, digamos, macroeconômica dessa história é o caso da pavimentação
de estradas no entorno ou até mesmo no interior de
unidades de conservação. Alguns anos atrás, tivemos o caso da pavimentação da estrada de acesso ao Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses
(MA), agora estamos às