Revista Digital Ciência & Comunicação - Volume 1, Número 1, Dezembro de 2004

 

 

Artigos

 

Alfabetização e Cultura Científica: conceitos convergentes?

http://www.jornalismocientifico.com.br/revista1artigomarcelosabbatini.htm


Marcelo Sabbatini,
engenheiro químico formado pela Universidade Estadual de Campinas, Brasil (1997), doutor em Teoria e História da Educação pela Universidad de Salamanca (2004), Espanha. Mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo, modalidade comunicação científica e tecnológica (2000). Especialista (máster) em ciência, tecnologia e sociedade (CTS): cultura e comunicação em ciência e tecnologia, também pela Universidad de Salamanca (1999)

 

 

Resumo
A partir da conceituação de alfabetização científica e de sua utilização histórica como objetivo ideal tanto por parte da comunidade dedicada à comunicação pública da ciência e da tecnologia como da educação científica pelo setor da educação formal, analisa-se o desenvolvimento deste conceito, relacionando-o com o emergente conceito de cultura científica. O direcionamento do debate a esta última concepção atende a uma reformulação que se produz paralelamente tanto no campo das ações comunicativas como educativas, com o traslado do foco nos elementos cognitivos (compreensão e explicação) em direção à contextualização da ciência e da tecnologia na cultura e nas atividades cotidianas, assim como à compreensão da natureza da produção do conhecimento científico e dos impactos de sua aplicação tecnológica. Em última instância, esta base cultural permitiria uma participação verdadeira da sociedade em seu sentido mais amplo no desenvolvimento científico-tecnológico, ao mesmo tempo em que serviria como fundamento para a formação especializada em ciência e tecnologia.

Palavras chave: alfabetização científica, educação científica, cultura científica

1. Introdução

Na atualidade muitos autores se preocupam com a existência de um desequilíbrio entre o desenvolvimento da ciência e tecnologia por uma parte, e da educação científica do cidadão por outra. O chamado "analfabetismo científico" constitui um obstáculo importante para a compreensão pública da ciência e da tecnologia e o seu conceito antagônico, o de alfabetização científica, foi utilizado como base para o modelo tradicional de comunicação pública da ciência e da tecnologia. Este modelo tradicional, também chamado de "modelo linear" ou "modelo de déficit" supõe que a os distintos formatos da divulgação científica devem preencher uma lacuna de conhecimento, informando e ensinando aos não-especialistas, e que este novo entendimento levaria a uma maior valorização da ciência e da tecnologia. Porém, ao mesmo tempo em que este modelo tradicional se vê criticado e surgem novas propostas, o conceito de alfabetização científica também se vê questionado. E da mesma forma que na prática a divulgação científica deve adotar um novo conjunto de estratégias e ações, também na educação científica se proclama uma reforma.

Por outro lado, analisar as raízes históricas da alfabetização científica leva a compreensão do debate atual e das controvérsias associadas a este conceito. Trata-se de um debate muito mais antigo a respeito dos objetivos mais amplos da educação científica e os meios para alcançá-la através da escolarização, iniciado em meados do século XIX (CHUN et al., 1999).

O lema "ciência para todos" surge de uma iniciativa da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em 1983, representando uma nova abordagem à alfabetização científica destinada ao público em geral. Embora o movimento de "ciência para todos" tenha se aplicado fundamentalmente ao setor do ensino obrigatório, também se pode aplicar à educação adulta, terciária ou aberta (ROSS; SCANLON, 1999). A "ciência para todos", implica alcançar três objetivos básicos: o crescimento pessoal e desenvolvimento contínuo, o papel de um indivíduo como cidadão em uma sociedade democrática e a preparação para as obrigações deste papel. Relacionado com estes objetivos, encontra-se a necessidade do indivíduo de sustentar-se, trabalhar e adquirir as habilidades básicas comuns a todas atividades sociais (BYBEE, 1997).

Por um lado, a aceleração das taxas de criação e difusão do conhecimento implica umas mudanças de paradigmas relacionados com a força de trabalho e com o sistema produtivo. A criação de novos ofícios, tornando obsoletas as antigas profissões, a redução da força de trabalho devido à utilização de processos tecnológicos substitutivos da mão de obra tradicional e o traslado de profissionais a novos setores de atuação implicam uma nova demanda de qualificação. Em relação às mudanças comentadas, requerem-se, por exemplo, a reciclagem de profissionais ligados às novas profissões, a re-qualificação de profissionais para adaptá-los às inovações tecnológicas, a necessidade de formação contínua, da auto-aprendizagem e do fomento da capacidade de buscar a informação por si mesmos. Assim, também a educação escolar deve reagir, fomentando o desenvolvimento de hábitos e atitudes que auxiliem ao indivíduo em suas necessidades informativa e formativa, com o objetivo último de consolidá-lo como um cidadão funcional.

Na prática, o analfabetismo científico se revela através da superstição e do misticismo, das condições sanitárias inadequadas, da falta de acesso a oportunidades de trabalho e crescimento profissional e por outro lado, pelo escasso aproveitamento que os governos fazem do conhecimento científico para a resolução de problemas produtivos e sociais e para a utilização dos recursos naturais através de esquemas de desenvolvimento sustentável (Padilla, 2001).

 2. O conceito de alfabetização científica

Para abordar o tema da alfabetização científica, portanto, é necessário definir em primeiro lugar o conceito de alfabetização. Face às diferenças entre as propostas teóricas, a alfabetização pode definir-se como o nível mínimo de habilidades de leitura e escritura que um indivíduo deve ter para participar da comunicação escrita. Este conceito se apresenta como uma dicotomia, justamente por que define uma medida limite que separa dois estados. A definição deste valor limite é subjetiva, mas há um consenso a respeito das habilidades, por general situadas em um mesmo domínio do saber, e dos conhecimentos necessários para estabelecer uma funcionalidade mínima. Também é importante comentar o conceito de alfabetização funcional, definida como o conjunto de habilidades mínimas necessárias para que o cidadão opere na sociedade contemporânea. Cabe notar que qualquer definição de alfabetização é inerentemente associada à sociedade que a utiliza, devido à diversidade de sistemas sociais e econômicos existentes no mundo (MILLER, 2000a).

Desta maneira, a alfabetização científica se define como o nível mínimo de compreensão em ciência e tecnologia que as pessoas devem ter para operar nível básico como cidadãos e consumidores na sociedade tecnológica. Segundo a proposta de Miller (2000b), o conceito de alfabetização científica implica três dimensões. A primeira consiste de um vocabulário básico de conceitos científicos, suficiente para que possa ser percebida a existência de visões contrapostas em um uma notícia de jornal ou artigo em revista. Trataria-se de um "vocabulário científico mínimo", incluindo termos básicos como "átomo", "molécula", "célula", "gene", "gravidade", "radiação". Em segundo lugar, uma compreensão da natureza do método científico, permitindo a distinção entre ciência e pseudociência e o acompanhamento de controvérsias científicas. E por último, uma compreensão sobre o impacto da ciência e a tecnologia sobre os indivíduos e sobre a sociedade. Este terceiro ponto varia grandemente entre países e para a realização de comparações em estudos internacionais se utiliza uma abordagem bidimensional ao conceito, utilizando somente as duas primeiras dimensões. A obtenção de um nível razoável em cada uma destas três dimensões proporcionaria um nível de competência suficiente para a compreensão e seguimento de temas relacionados com a ciência e a tecnologia nos meios de comunicação (MILLER, 2000a).

Já outra dimensão adicional, menos explorada, é a existência de uma atitude científica, definida como uma boa disposição para mudar de opinião com base em novas provas, a busca da verdade sem prejuízos, o entendimento das relações de causa-efeito e a predisposição de adquirir um hábito de somente realizar julgamentos a partir de feitos concretos.

O conceito de alfabetização científica, proposto pela American Association for the Advancement of Science (AAAS), inclui as habilidades para familiarizar-se com o mundo natural e reconhecer sua diversidade e sua unidade; de entender os conceitos fundamentais e os princípios científicos; de perceber a inter-relação entre a matemática, a ciência e a tecnologia; de assumir que estas são empresas humanas, o que também implica ter limitações; de adquirir a capacidade de pensar segundo o exigido pelo rigor científico e de utilizar o conhecimento científico com propósitos individuais e sociais. Para alcançar estes objetivos, a ciência deve abrir-se ao público, e para que isto aconteça, algumas condições básicas são necessárias: a educação durante toda a vida ou "lifelong learning", o aumento de oportunidades de participação em questões científicas e tecnológicas, uma educação apropriada em ciências e o acesso conveniente e inteligível ao mundo da ciência (RUTHERFORD, 2003).

Pese a existência de múltiplas definições, com variações históricas do conceito, a noção clássica de alfabetização científica está relacionada com a questão de compreender conceitos e princípios científicos, em outras palavras, com uma questão cognitiva. Na prática esta abordagem vê-se refletida na construção de indicadores de percepção pública da ciência e da tecnologia, que tem como objetivo sondar o estado da opinião pública em quanto ao interesse, conhecimento e atitudes frente a estas atividades, e conseqüentemente, com as políticas públicas neste setor. Este tipo de pesquisa se utiliza, portanto, para a medição de indicadores das atitudes dos membros da sociedade ante o financiamento público da ciência e a confiança na comunidade científica, além da percepção dos riscos e benefícios associados à ciência e à técnica. A National Science Foundation (NSF), nos Estados Unidos, consolidou uma base metodológica, utilizada na atualidade por outros países utilizando justamente esta conceituação da alfabetização científica.

Dos estudos realizados nos Estados Unidos, combinando os dois primeiros critérios de alfabetização científica mencionados (vocabulário básico e compreensão da natureza da ciência) destaca um alto defase entre o nível de interesse demonstrado em ciência e tecnologia e o baixo nível de informação possuído, um resultado que se mantém durante mais de duas décadas consecutivas. Esta polarização também se observa em outros estudos, que utilizam a mesma base metodológica, por exemplo, os chamados "Eurobarômetros" na União Européia. Outro dado importante é que ambos continentes existe uma percepção positiva dos resultados da ciência, por exemplo, fazendo do mundo um lugar melhor e melhorando a qualidade de vida, ainda que existam diferenças profundas frente à utilização de tecnologias específicas, como a energia nuclear e a engenharia genética. Por outro lado, os estudos sobre a percepção pública da ciência e da tecnologia se situam em uma área de estudos empíricos, enquanto que a reflexão teórica a respeito de sua validez metodológica, a análise dos resultados e implicações para a formulação de políticas científico-tecnológicas tiveram um crescimento menor.

O conceito de alfabetização científica possui, porém, outras perspectivas. Para Bybee (1997), a partir de uma perspectiva de eslogan, ou seja, do uso repetido sem uma clarificação do sentido, um termo serve como símbolo para a transmissão das idéias e atitudes chave dos movimentos educativos e para a geração um espírito de comunidade. Portanto, como eslogan, a alfabetização científica está associada a um valor positivo, identificando-a com uma reforma contemporânea, e unindo aos educadores através de uma declaração única que expresse os objetivos da educação científica.

Em segundo lugar, a alfabetização científica entendida como metáfora procura expressar os objetivos da educação científica, transformando o sentido da alfabetização e adotando um sentido implícito mais além do sentido estrito do término (saber ler e escrever) que faz referência a uma declaração teórica e aos componentes fundamentais do que se pretende obter com a educação científica. A metáfora também provê um modo de pensar em como alcançar uma educação científica eficaz comparando-se, por exemplo, a uma imersão em uma cultura, freqüentemente utilizada na aprendizagem de idiomas: com a imersão dos estudantes em questões e processos autênticos da ciência e problemas reais frente à memorização de um vocabulário científico. Esta imersão também sugere um objetivo para os estudantes, fixando padrões de realização. Por exemplo, aprender algo mais que um vocabulário básico.

Mas segundo Shamos (1988) a alfabetização científica é um desafio inalcançável. O ponto chave da questão está no fato de que a maioria das pessoas pode viver na sociedade virtualmente ignorando a ciência e a técnica, ao mesmo tempo em que desfrutam de todo seu conforto, de forma que a sociedade se isolou da necessidade de saber ou compreender a origem destes avanços. Além disso, a discussão teria fracassado ao não especificar como a sociedade vai se beneficiar de um maior conhecimento da ciência, em comparação com qualquer outra disciplina possível, além de não especificar padrões quanto aos objetivos e os modos de alcançá-los.

E o argumento de que a alfabetização científica é necessária para a participação ativa em questões e decisões relacionadas com a ciência e a técnica ignora a realidade de que a carga de conhecimentos necessária para que se alcancem julgamentos independentes se encontra além da capacidade dos cientistas mesmos. Por outro lado, as controvérsias científico-tecnológicas possuem fortes ingredientes emocionais que levam à distorção de juízos, independentemente do grau de alfabetização científica do indivíduo, dado que as emoções entram em conflito com crenças pessoais, políticas ou religiosas.

3. O conceito de cultura científica

Na atualidade, surgem outras propostas, e mais que alfabetização científica, propõe-se falar do nível de "cientificidade" da cultura de uma sociedade, quer dizer, em que medida as instituições científicas, seus conteúdos, práticas, processos e discursos se encontram refletidos na sociedade como um todo. A concepção da alfabetização científica como um atributo individual se revela insuficiente para compreender a circulação e uso social do conhecimento, assim como a participação cidadã. Uma vez assumido que a ciência e a tecnologia são partes da sociedade, é necessário um maior nível de integração destes conceitos para converter a denominada "cultura científica" em conteúdos manifestos nas práticas gerais e presentes no sentido comum. Os critérios para o desenvolvimento deste nível de cientificidade são portanto: o nível de aplicação de práticas científicas em atividades relevantes, o grau de informação circulante de forma pública, o grau de desenvolvimento da cultura ciência-tecnologia-sociedade e o grau de participação cidadã nas controvérsias de caráter científico-tecnológico (POLINO; FAZIO; VACAREZZA, 2003).

Por outro lado, na atualidade também é comum a utilização do termo "cultura científica" como elemento objetivo da comunicação pública da ciência. O termo também se apóia em uma proposta de consideração da ciência como parte da cultura geral. A separação entre ciência e cultura é iniciada com a profissionalização da ciência no século XIX, mas alcança seu auge com o trabalho de Snow (1959), que identifica a existência de duas culturas, uma científica e outra humanista, dentro da comunidade acadêmica. A divisão de culturas afetaria e caracterizaria, assim, as concepções mesmas de construção e disseminação do conhecimento.

Para Snow, a transferência do paradigma das duas culturas a partir do contexto acadêmico para o não acadêmico incide diretamente sobre a questão da alfabetização científica, já que a especialização precoce no sistema educativo cria a necessidade de "intérpretes" para mediar as mensagens especializadas da ciência.

Mas a partir dos setenta surge uma "terceira cultura", integrada pelos estudos sociais da ciência e a tecnologia e pelo reconhecimento de valores humanísticos na ciência. Na atualidade, esta multiculturalidade também provém da manifestação dos campos híbridos de investigação, que não se podem categorizar segundo extremos bipolares, mas sim constituem campos heterogêneos de disciplinas. Surge então uma proposta pós-moderna, para a prática de uma comunicação científica "(multi)cultural", que tem em conta a diversidade cultural nas comunidades acadêmicas e científicas (VAN DIJCK, 2002).

A influência da ciência na cultura pode ser detectada através de sua influência sobre o pensamento cotidiano, da utilização dos conhecimentos científicos para a resolução de problemas práticos e da capacidade da ciência para melhorar a toma de decisões pessoais. Ainda assim, esta relação não está tão clara, devido a que tradicionalmente o sistema técnico-científico foi considerado fechado em si mesmo em relação à sociedade, ao mesmo tempo em que uma alfabetização científica deficiente faz que a ciência seja percebida como algo pouco relevante para a vida cotidiana (MASSANERO et al., 2002).

Ao examinar a relação da ciência com outras formas de conhecimento, Fernández-Rañada (2002) chega à conclusão de que a "ciência se gera socialmente, de modo que é influenciada pela cultura e nela influi, tendo sua ação mais pontos em comum com outras abordagens à realidade, como as humanidades e a arte, do que se pode supor" e apesar de seus condicionamentos culturais o saber científico chega a "afirmações objetivas, ou seja, supra-culturais, válidas em qualquer ambiente cultural ou ideológico". Surge então o conceito de cultura científica:

Mas o que é realmente a cultura científica? A resposta a esta pergunta não é simples; como não o é a resposta à pergunta a respeito do que é a cultura artística ou literária. Uma pessoa culta –tanto faz seja em artes, literatura ou ciências- não é o erudito, que sabe quase tudo, nem o pesquisador, que indaga na profundidade de determinados temas. É muito mais aquele que pode compartilhar com outras pessoas uns determinados conhecimentos básicos, históricos, conceituais, generalistas...que lhe ajudam a compreender melhor e a apreciar mais o mundo que lhe rodeia (TOHARIA, 2001).

Do mesmo modo,

A expressão cultura científica tem a vantagem de englobar tudo isso [alfabetização científica, divulgação científica, percepção/compreensão da ciência] e conter ainda, em seu campo de significações, a idéia de que o processo que envolve o desenvolvimento científico é um processo cultural, quer seja ele considerado do ponto de vista de sua produção, de sua difusão entre pares ou na dinâmica social do ensino e da educação, ou ainda do ponto de vista de sua divulgação na sociedade, como um todo, para o estabelecimento das relações críticas necessárias entre o cidadão e os valores culturais, de seu tempo e de sua história. (VOGT, 2003).

4. Alfabetização científica e educação em ciências

Uma das principais formas de alcançar a alfabetização científica é através da educação científica. Roqueplò (1974) analisa a relação entre divulgação científica, realizada principalmente através do jornalismo científico, mas podendo assumir outras formas como os museus e centros interativos de ciência, e o ensino formal. Assim, a primeira relação é de complementaridade. Sua principal justificação é a acelerada especialização do conhecimento frente à lentidão dos programas escolares em relação com o ritmo da ciência e de incorporar seus conteúdos. Neste panorama a divulgação surge como um meio mais flexível, permitindo assegurar uma cultura geral que acompanha o progresso das ciências. A segunda relação é a de dependência direta, com o estabelecimento de uma brecha de conhecimento entre vários setores da sociedade. Pese ao conhecimento mínimo assegurado pelo ensino escolar, a contribuição da divulgação é acessível somente aos que têm conhecimento suficiente para alcançar um benefício. Por isso também existe o risco de que a divulgação científica se dirija às elites, acentuando as desigualdades do ensino oficial.

Entretanto, como elemento comum, a idéia básica do movimento em pró da alfabetização-cultura-apreciação científica é o conceito de una "uma nova forma de ensinar que rompa, em particular, com a visão de uma ciência descontextualizada, alheia aos interesses e condições sociais" (BYBEE, 1997), de forma bastante similar ao que o movimento da compreensão pública da ciência e a tecnologia postula na atualidade. Para Trefil (1996), a alfabetização científica é um subconjunto de algo muito mais geral, denominado alfabetização cultural. Assim, quase todas questões científicas não tratam da ciência isoladamente, mas sim demandam um conhecimento sobre temas como economia e política, por exemplo.

Na atualidade, as limitações da educação de ciências se podem resumir na incompreensão da ciência devido à ausência de um sentido humanístico, que ajudaria no conhecimento de sua natureza, dos pontos fortes e limitações da pesquisa científica e da percepção da ciência como uma complexa atividade social, com dimensões filosóficas, sociais e éticas. Também se encontra ausente o tratamento a partir de uma perspectiva histórica, com o retrato dos episódios com transcendência para o patrimônio cultural, dos marcos do desenvolvimento do pensamento no mundo ocidental.

Por último, o ensino das ciências se caracteriza por uma imperfeição na hora de lidar com idéias e conceitos especializados que transcendam os limites disciplinares, como por exemplo, os conceitos de "constância" e "mudança", de "sistemas", "modelos" e "escala". Associada a esta abordagem, a concepção das disciplinas científicas como inerentemente difíceis e ausentes de relevância pessoal ou social em termos de participação pública. Este "alto nível" atribuído à ciência tem um custo substancial, pois implica a idéia de que a ciência "é para os outros", quer dizer, para uma minoria dotada de capacidades científicas e técnicas (RUTHERFORD, 2003).

Para efetuar uma mudança neste panorama educativo é necessário adotar propostas curriculares diferenciadas, que especifiquem os objetivos de aprendizagem claramente e que capacitem para a participação no mundo da ciência, para toda vida. Os conteúdos dos cursos deveriam refletir tanto os aspectos técnicos como as dimensões humanas da ciência; estes conteúdos devem acompanhar-se de materiais educativos que tratem as ramificações de maneira transversal e não só em capítulos superficiais ou anexos que possam facilmente ser ignorados.

Um possível currículo para promover a apreciação da ciência incluiria a compreensão dos objetivos da ciência e da tecnologia, dos motivos pelos quais ambos são necessários, do papel da teoria na ciência, do significado dos fatos" e das "verdades científicas", do papel da experimentação em ciência, da relação complementar entre a ciência e da tecnologia, da história da ciência e de sua natureza acumulativa, dos potenciais e limitações no horizonte da ciência, da ameaça dos movimentos pseudo e anticientíficos e por fim, do impacto social que a ciência e a técnica ocasionam na sociedade (SHAMOS, 1995).

Em último lugar, a avaliação do estudante deve vincular-se estreitamente com os objetivos da aprendizagem, para que o processo de mudança seja efetivo. Além disso, a menos que os professores se comprometam profundamente em promover a alfabetização científica a todos os estudantes, estes objetivos não vão ser levados a sério. É mais, sem os conhecimentos e habilidades necessárias para efetuar estes novos objetivos e estratégias, o professorado não será capaz de operar eficazmente nos cursos. Sua formação e capacitação devem ter a mesma base pedagógica que os estudantes, para uma compreensão ampla da ciência como empresa social e humana, e esta deve manter-se ao longo da carreira profissional.

Em contrapartida, o conceito de cultura científica determina um posicionamento específico, assumindo a noção de conhecimento científico generalizado na população, não mais a partir de uma base de medição da compreensão de conceitos, em outras palavras, do "nível de alfabetização científica, mas sim de um "modo de entrelaçar" a ciência que as crianças aprendem na escola a seus modos cotidianos de reagir, pensar, emocionar-se e atuar, que poderia incorporar-se em seu pensamento familiar, tanto como o íntimo vocabulário da cultura (SOLOMON, 1997).

Uma justificativa algo distinta é a aprendizagem das ciências pelo bem individual, dada as relações entre ciência e cultura. Conhecer as ciências, portanto, implicaria a possibilidade de uma participação cultural (MASSEY, 1999).

Assim, a apreciação da ciência, no sentido de perceber a ciência como algo "interessante, estimulante e entretido" constitui um objetivo mais realista do que de equiparar o conhecimento dos não-especialistas com o dos cientistas. Segundo Shamos (1988), em uma cidadania que compreenda e aprecie o que é a ciência é menos provável que se desenvolvam atitudes anticientíficas, que em uma que se viu forçada a aprender ciência.

E frente à impossibilidade de que a educação científica permita que os cidadãos julguem com critérios técnicos, em outras palavras que se equiparem ao peritos, a educação de ciências deveria procurar, como mínimo, reduzir o medo associado às questões científicas e técnicas e a falta de confiança em compreender princípios básicos (MASSEY, 1999).

Por último, entre as características de uma pessoa educada se encontram o desejo e a habilidade de continuar aprendendo uma vez afastada do sistema formal. Entre os atributos que se mencionam para alcançar este nível de "lifelong learning", destacam a curiosidade (o desejo de compreender fenômenos e de saber mais sobre as coisas) atuando como força condutora; a confiança, ou habilidade de aprender coisas novas e a discriminação, pois a curiosidade sem um foco de atenção pode conduzir ao esforço de dominar temas irrelevantes ou errôneos, levando a dissipação de energia mental e física. Estas são justamente as características que emergem do estudo das ciências, pois entendida como processo, e não só como corpo de conhecimento, demanda e alimenta estes valores (MASSEY, 1999).

Em suma,

Mais além do enfrentamento, parece hoje fora de toda dúvida não só a influência da cultura na ciência, mas também que a própria ciência é uma forma mais de cultura, feita por pessoas e para a humanidade, embora possivelmente uma cultura algo especial (…) Sem chegar a pensar ingenuamente que as barreiras entre as duas culturas desapareceram, hoje em dia se tende mais a reconhecer, de ambos lados, que a ciência é parte inerente e medular da cultura humana, por isso resulta urgente seguir trabalhando pela comunicação da ciência à sociedade para incrementar sua compreensão pública e melhorar a alfabetização científica de toda a cidadania (MASSANERO et al., 2002).

5. Conclusão

Neste artigo analisamos o conceito de alfabetização científica a partir de suas múltiplas definições e de sua relação com os processos de comunicação pública da ciência e da tecnologia e da educação em ciências. Neste sentido notamos que apesar de ter objetivos comuns, e além do conceito central compartido, existe uma separação entre a literatura científica e crítica na área da educação de ciências e na área de comunicação social, incluído o jornalismo científico e outras formas de divulgação.

O recentemente adotado conceito de cultura científica, apesar da falta de uma definição suficientemente consolidada e teóricamente fundamentada, aparece como um possível elemento de reunificação entre estas diferentes áreas de estudo e também de sua aplicação prática. Mais importante, parece dirigir o debate, desde uma noção da alfabetização centrada nos elementos cognitivos, quer dizer, na compreensão e explicação, a uma concepção de contextualização do saber científico nas atividades cotidianas, complementada por uma compreensão da dinâmica social da produção do conhecimento, assim como das repercussões de sua aplicação tecnológica. Finalmente, tamnbém cabe dizer que o conceito de cultura científica, apesar de certa semelhança e de esta sinalizada convergência conceitual, é mais amplo do que conceito de alfabetização científica, na medida em que incorpora um componente social de análise e interpretação ao processo de apropriação do conhecimento, frente ao caráter essencialmente individual (e a partir do qual se realizariam infererências para toda a sociedade) da concepção tradicional.

Através de estratégias de comunicação social e de ações pedagógicas que busquem esta noção de alfabetização científica, muito mais centrada na apreciação se chegaria à incorporação do saber científico tanto ao imaginário social do indivíduo, assim como da sociedade circundante.

Posteriormente, com esta base de entendimento da ciência e da tecnologia como processos integrantes e presentes na cultura, iniciariam-se as ações de formação especializada de técnicos e cientistas, cuja atividade futura também seria afetada pela percepção da sociedade com um todo, em um processo contínuo de negociação e influência mútua.

Em última instância, esta concepção da cultura científica em sentido amplo propõe-se como a única forma possível para permitir uma participação efetiva da sociedade em um quadro democrático e desta forma orientar o desenvolvimento econômico de um país ou região.

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