AMAZÔNIA - A FLORESTA SOBREVIVERÁ?
Enquanto o governo tenta provar que o programa Avança Brasil causará pouco impacto no ambiente, cientistas fazem previsões catastróficas
Por Maurício Tuffani (Enviado especial à Amazônia)
Mata arrasada
Queimada em Tangará da Serra, no norte de Mato Grosso
As duas principais revistas científicas do mundo apresentaram previsões sombrias em janeiro deste ano. Uma delas dizia que até 42% da Floresta Amazônica poderá estar devastado em 20 anos se forem pavimentadas grandes rodovias da região. Essas obras integram o programa do governo conhecido como Avança Brasil, que prevê investimentos em infra-estrutura em todo o país nos próximos três anos. Galileu mostra que o dano pode ser ainda pior. As pesquisas não consideraram a eliminação de milhares de pequenas nascentes de diversos rios, que afetam os processos ecológicos de áreas mais distantes. O governo desqualificou esses estudos, sem ter avaliado ainda o impacto ambiental das obras que pretende realizar na floresta exuberante, mas de solos pobres e frágeis.
As previsões dos impactos das obras rodoviárias do Avança Brasil na Amazônia foram feitas com base no cenário do início do ano 2000: dos cerca de 4 milhões de quilômetros quadrados da Floresta Amazônica na época do Descobrimento, em 1500, já haviam sido desmatados aproximadamente 550.000 km², correspondentes a 13,75% da área original.
Rumo a devastação
Fumaça no céu indica queimada em trecho da cidade de Vilhena (RO) da rodovia BR-364 (Cuiabá-Rio Branco)
A primeira pesquisa sobre os impactos ambientais do programa governamental previsto para o período de 2000 a 2003 foi apresentada em março do ano passado por três ONGs: o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), de Belém, o Instituto Socioambiental (ISA), de São Paulo, e o Centro de Pesquisas de Woods Hole (WHRC), em Massachusetts, EUA. O estudo considerou cerca de 3.500 km de asfaltamento de quatro rodovias construídas nos anos 70, época em que o governo financiava empreendimentos que começavam com a derrubada da mata, considerada como benfeitoria.
As três entidades limitaram-se a avaliar os possíveis impactos do asfaltamento das estradas Cuiabá-Santarém (BR-163), Humaitá-Manaus (BR-319), Manaus-Boa Vista (BR-174) e o trecho Marabá-Rurópolis da Transamazônica (BR-230). Chegaram à conclusão de que em um período de 25 a 35 anos essas obras provocariam desmatamentos de 80.000 km² a 180.000 km², expandindo a devastação para uma faixa de 15,75% a 18,25% da área da floresta em 1500.
Dados "não-otimistas"
O estudo foi revisado e teve novos resultados publicados em 11 de janeiro deste ano na revista científica inglesa Nature por Georgia Carvalho, do WHRC e também do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), de Manaus, e colaboradores. As novas projeções foram de 120.000 km2 a 270.000 km² de área desmatada, esta última aproximadamente igual à da Grã-Bretanha ou à do Estado de São Paulo. Desse modo, a devastação amazônica total seria de 15,75% a 20% da floresta que havia em 1500.
Cenários para 2020
Estudo prevê duas situações para os remanescentes da Floresta Amazônica
Realizada pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e pela Smithsonian Institution, a pesquisa mostra um quadro com 28% de áreas desmatadas e outro, com até 42%.
A segunda pesquisa, de cientistas do Inpa e da Smithsonian Institution, dos EUA, trouxe previsões muito mais alarmantes: um cenário "otimista", com 28% da floresta desmatado em 20 anos, e outro, "não-otimista", com a remoção de 42% da cobertura florestal de 1500. Dos 58% restantes, só 5% seriam áreas virgens ou sem nenhum impacto .
Os resultados do estudo foram divulgados pelo jornal Folha de S. Paulo em novembro de 2000, antecipando a publicação oficial na revista norte-americana Science, que só veio a ocorrer em 19 de janeiro deste ano. Coordenado pelo norte-americano William Laurance, do Inpa, o trabalho foi severamente criticado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), ao qual está subordinado o Inpa. Em nota oficial, o ministério afirmou que o estudo não tinha a "chancela institucional" do MCT nem do Inpa.
Depois foi a vez da Embaixada Brasileira em Washington, que publicou na Science uma réplica aos dados de Laurance. Segundo a nota diplomática, o estudo do Inpa e da Smithsonian se baseara em taxas elevadas de desmatamento que já não estavam mais se repetindo e as obras do Avança Brasil somariam no máximo 8% aos 13,75% (citados como "somente 14%") desmatados desde 1500. No total chegaria a 22%, dizia a nota.
Avaliação prévia
Pecuária
Prática agride ambiente da região, mas é muito rentável
Laurance e seus colegas responderam à réplica, mostrando que os investimentos públicos e privados previstos pelo Avança Brasil aumentariam as taxas de desmatamento e induziriam ramificações das rodovias a serem asfaltadas ou construídas. Seria uma retomada dos padrões de desmatamentos comuns nos anos 70, principalmente em Rondônia, chamados de "espinha-de-peixe". Os pesquisadores mostraram também outros efeitos, como o ressecamento das florestas, que aumentaria o risco de incêndios. A polêmica levou o MCT e o Ministério do Planejamento, autor do programa, a se exporem à opinião pública, principalmente às ONGs e universidades, que acusavam o governo de não dialogar.
Até na máquina governamental houve reações. O diretor-geral do Inpa, Warwick Kerr, reconheceu a validade da pesquisa de Laurance. Outros órgãos aproveitaram para negociar mudanças no Avança Brasil. No Ministério do Meio Ambiente, a secretária de Coordenação da Amazônia, Mary Allegretti, obteve habilmente dos ministérios do Planejamento e da Ciência e Tecnologia o compromisso de realizar até o fim deste ano um estudo prévio dos impactos ambientais do programa na Amazônia. Para os ambientalistas, isso foi uma vitória, pois obrigou o governo a fazer o que, para eles, já deveria ter sido feito. Até aquele momento, o governo pretendia se limitar ao cumprimento da lei: fazer estudos de impacto ambiental para cada uma das obras previstas. Nos últimos anos, cresceu a convicção de que grandes projetos exigem também uma avaliação prévia e global. O estudo do impacto de todo o programa na Amazônia ainda está em licitação. Mesmo assim, o MCT reafirmou a GALILEU sua posição de repúdio ao estudo do Inpa.
Devastação ramificada
As grandes rodovias induzem ramificações sucessivas que levam a clareiras na mata (esq.). Em fotos de satélite, parecem espinhas de peixe.
"Ninguém se preocupou, de início, em sondar a complexa cadeia de conseqüências das rodovias que rasgaram o coração das selvas, transformando-as em extensos caminhos da devastação." Essa afirmação foi feita há dez anos pelo geógrafo Aziz Nacib Ab’Sáber, do Instituto de Estudos Avançados da USP. Ela foi usada para criticar a política dos anos 70, que implantou na Amazônia rodovias como a Transamazônica e a Cuiabá-Santarém. Para muitos ambientalistas e pesquisadores, a frase continua atual.
Amazônia em números
Área*
4,9 milhões de quilômetros quadrados (57,4% do Brasil)
População**
12,8 milhões de habitantes (7,6% do Brasil)
*Inclui parte de Mato Grosso e do Maranhão
** Somente Região Norte
Por mais detalhados que tenham sido os estudos que levaram aos dados publicados na Nature e na Science, vários processos ecológicos e fatores do meio físico não foram considerados naquela ocasião, como reconheceu o próprio Laurance em entrevista a GALILEU em Manaus. Talvez o principal deles seja a eliminação de nascentes. "Esse é um dado muito importante a ser considerado na previsão de impactos ambientais, principalmente na Amazônia", disse Ab’Sáber. A Floresta Amazônica envolve a maior bacia hidrográfica do mundo. Ela não possui somente rios gigantescos, mas também uma enorme e intrincada teia de pequenos cursos d’água que se unem, formando outros, cada vez maiores e mais caudalosos.
Programa centralizado
"As ameaças do Avança Brasil são provenientes da idéia governamental de que a Amazônia deve ser explorada da mesma forma que fez da Mata Atlântica o que é hoje", disse João Paulo Capobianco, do ISA, referindo-se à formação florestal da costa leste do Brasil, hoje reduzida a cerca de 7% do que era em 1500. Segundo ele, o programa não contempla alternativas do chamado desenvolvimento sustentado, que consiste em explorar os recursos naturais sem levá-los à exaustão, aproveitando as comunidades das próprias regiões e oferecendo a elas condições de aumentar sua renda e melhorar sua qualidade de vida. O desenvolvimento sustentado pode ser resumido no tripé ecologicamente correto, socialmente justo e economicamente viável.
Águas e matas
A Amazônia possui cerca de 3,5 milhões de quilômetros quadrados de florestas e 70% da água doce do Brasil, que possui 12% do total mundial.
O Ministério do Planejamento discorda de que o Avança Brasil seja uma proposta fechada do governo para a sociedade e desconsidere alternativas de desenvolvimento sustentado. Para fundamentar essa posição, Ronaldo Luís Fernandes da Rocha, gerente do Projeto de Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento, cita diversas ações previstas no programa, destinadas a implantar projetos de agricultura familiar, de florestas sustentáveis, melhoria dos sistemas de fiscalização e monitoramento ambiental da região, além de outros.
Segundo Rocha, essa ações tiveram como base consultas às universidades. Ele reconhece, no entanto, que somente agora as ONGs foram procuradas pelo governo para opinar sobre o programa. "Parece que falhamos nesse ponto", disse. Vários professores universitários, no entanto, negaram que suas instituições foram consultadas. "Deve ter havido contatos individuais, mas nada que tenha envolvido vários dos pesquisadores que tratam do assunto", comentou Paulo Kageyama, vice-diretor do Instituto de Pesquisas e Estudos Florestais da USP, em Piracicaba. Na verdade, o governo somente agora está discutindo o Avança Brasil, na tentativa de conter a insatisfação de diversos centros de pesquisa e de ONGs. Espera-se que esteja disposto também a rever suas posições e aberto para acatar eventuais sugestões pertinentes de reformulações.