PROJETO DE LEI PREVÊ PRIVATIZAÇÃO DA AMAZÔNIA
Rodrigo Rangel, in O GLOBO, 01-08-2004

http://oglobo.globo.com/jornal/pais/145245594.asp

BRASÍLIA. O governo federal está finalizando o texto de um projeto de lei que promete atiçar o debate entre os que defendem a preservação integral da Amazônia e aqueles que pensam num projeto econômico para a floresta. A proposta, elaborada pelo Ministério do Meio Ambiente e que agora está sendo ajustada na Casa Civil, prevê a privatização de áreas de floresta localizadas em terras públicas, seja do governo federal, de estados ou municípios.

A idéia é mapear as faixas de floresta que estejam fora de unidades de conservação e dividi-las em blocos que serão concedidos à iniciativa privada por licitação. Qualquer empresa poderá participar, inclusive as estrangeiras que têm seus braços no Brasil. O Ministério do Meio Ambiente calcula que, para produzir de forma sustentável os 30 milhões de metros cúbicos de madeira consumidos anualmente na Amazônia, será preciso abrir à iniciativa privada algo em torno de 50 milhões de hectares de florestas. Ou seja, 15% de toda a região amazônica — uma área quase igual à da Bahia e maior do que os estados do Rio, São Paulo e Espírito Santo somados.

Renda anual de R$ 200 milhões

O governo pretende cobrar das concessionárias pelo volume dos produtos retirados da floresta. Apesar de ter como foco a extração de madeira, a proposta prevê ainda a exploração de outros bens naturais, como frutos, resinas e plantas ornamentais, por exemplo. Já existe até uma conta preliminar de quanto as concessões gerariam para os cofres da União: algo em torno de R$ 200 milhões por ano, metade do orçamento do Ministério do Meio Ambiente.

Pela última versão do texto, a que o GLOBO teve acesso, os vencedores das licitações teriam direito a explorar os recursos naturais das florestas, mas não ganhariam a propriedade da terra. O ministério diz que as regras serão rígidas e que, em qualquer tempo, o governo poderá cancelar o contrato se o concessionário estiver extrapolando os limites previstos no edital de licitação.

Um dos entusiastas da idéia, o secretário nacional de Florestas e Biodiversidade, João Paulo Capobianco, rechaça o uso da palavra "privatização" para definir o modelo proposto pelo governo.

— Não é privatização. Pelo contrário, é soberania total na Amazônia — diz.

— O mais importante dessa estratégia é que hoje não existe um mecanismo sustentável de terras públicas e agora passaremos a ter — reforça o diretor do Programa Nacional de Florestas do ministério, Tasso Azevedo.

Ambientalistas reagem mal

Antes mesmo de chegar ao Congresso Nacional, o projeto já causa furor entre profissionais ligados à causa da Amazônia.

— Isso é um ato criminoso de uma meia-dúzia que se assenhorou do Ministério do Meio Ambiente. Se nós ainda não temos bons exemplos de exploração sustentável, como vamos abrir as florestas aos outros, inclusive aos estrangeiros? — indaga o geógrafo Aziz Ab´Saber, ex-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Para o engenheiro agrônomo Flávio Garcia, do Movimento em Defesa da Amazônia, a proposta é um atentado à soberania:
— Por trás disso tem o desejo inexplicável de entregar grandes áreas da Amazônia ao capital estrangeiro. É a globalização da Amazônia

Proposta divide especialistas

Ismael Machado

BELÉM. Um dos primeiros alvos do projeto do governo pode ser a Floresta Nacional do Tapajós, no Pará, área com cerca de 2.560 quilômetros quadrados. Atualmente sob jurisdição do Ibama, foi criada em fevereiro de 1974 pelo então presidente Emílio Médici. Para quem faz pesquisas na área, a simples idéia de "privatização" da floresta é um risco.

— Isso demonstra a incapacidade do governo federal de gerenciar estas áreas e a necessidade de salvaguardar os recursos naturais encontrados nesses espaços — diz o pesquisador Wilker Nóbrega, cuja tese de mestrado enfoca o uso sustentável da floresta para o turismo.

Na Amazônia existem pelo menos 54% de terras públicas devolutas sob risco de invasão ou ocupação desordenada por madeireiras, fazendeiros e garimpeiros.

Só na região Centro-Sul do Pará existem 23 mil quilômetros de estradas informais, construídas por garimpeiros e madeireiros. Para o pesquisador do Instituto de Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) Paulo Barreto, isso demonstra a necessidade de o governo intervir na região sob o risco de perdê-la definitivamente. Barreto é um dos membros da equipe que viajou até a Austrália para conhecer de perto um projeto semelhante ao que o governo brasileiro pretende implementar na região amazônica.

— Há uma tendência forte de perda e ocupação nessas áreas — alerta Barreto, que defende o projeto, mas com ressalvas.

Para ele, o governo brasileiro, antes de dar a concessão, tem de fazer um plano diretor estabelecendo, em cada área, o que vai ser feito e de que forma as mudanças ocorrerão.

EUA pagaram viagem de funcionários


BRASÍLIA. Para elaborar o projeto que prevê a privatização de áreas de floresta localizadas em terras públicas, técnicos do Ministério do Meio Ambiente pesquisaram experiências semelhantes em outras partes do planeta. E uma dessas incursões, especialmente, é de arrepiar os cabelos daqueles críticos que vêem na proposta uma ameaça à soberania brasileira na Amazônia e um primeiro passo para a internacionalização da floresta: uma viagem feita entre março e abril deste ano por funcionários do governo brasileiro ao estado australiano de New South Wales foi organizada e patrocinada pelo governo dos Estados Unidos.

O dinheiro saiu dos cofres do Serviço Florestal Americano (USDA/FS) e da Usaid, a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional. Relatório da viagem obtido pelo GLOBO aponta que quatro funcionários do governo brasileiro foram a New South Wales. Pelo menos dois tiveram as despesas custeadas pelos órgãos americanos, entre eles Tasso Azevedo, diretor do Programa Nacional de Florestas. Também participaram da visita técnica representantes de organizações não-governamentais que atuam na Amazônia.

Ambientalistas temem que governo perca o controle

O relatório aponta problemas no sistema australiano a serem levados em consideração na elaboração do modelo brasileiro, para evitar erros estratégicos. Diz, por exemplo, que as florestas públicas nativas de New South Wales têm gerado perdas financeiras ao governo que chegam ao equivalente a R$ 20 milhões. "Esse caso serve para alertar o governo brasileiro sobre as possíveis dificuldades de um sistema de florestas públicas", diz o texto, que aponta a seguir uma série de sugestões.

Um dos principais motivos de preocupação dos ambientalistas que criticam a concessão de florestas à iniciativa privada é o risco de o governo perder o controle sobre as áreas repassadas às empresas.

— Estaríamos abrindo as portas para grandes grupos estrangeiros que devastaram matas da Indonésia e de países da África e depois saíram — afirma o ambientalista Flávio Garcia, do Movimento em Defesa da Amazônia.

Pelo projeto de lei, a fiscalização da execução dos contratos e o próprio processo de concessão ficaria a cargo do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), uma autarquia a ser criada na estrutura do Ministério do Meio Ambiente.

Capobianco diz que risco de descontrole é pequeno

O secretário de Florestas, João Paulo Capobianco, garante que os riscos são pequenos. Ele observa que, nos primeiros dez anos de validade da lei, poderão ser concedidos apenas 20% do total das florestas públicas disponíveis para serem licitadas. A idéia, afirma, é primeiro experimentar o modelo para depois ampliá-lo.

— Em primeiro lugar, nós vamos manter a propriedade dessas terras sob controle do poder público. Além disso, as regras são bastante rígidas e a área a ser concedida inicialmente é muito pequena em relação ao tamanho da Amazônia.