Por Felipe A. P. L. Costa em 30/05/2011 na
edição 644
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/sobre-baratas-e-percevejos
Na
sexta-feira (27/5), dois dos maiores jornais do país publicaram versões quase
idênticas de uma mesma matéria, a saber: “Inseto é fotografado comendo filhote de tartaruga no
Japão“, no Estado de S. Paulo, e “Foto mostra inseto comendo filhote de tartaruga no Japão“,
na Folha de
S.Paulo. Os dois artigos são reproduções praticamente inalteradas,
embora ligeiramente encurtadas, de uma matéria divulgada no mesmo dia pela BBC
Brasil – “Inseto é fotografado comendo filhote de tartaruga no
Japão“. A matéria original, intitulada “Giant water bug photographed
devouring baby turtle“,
assinada por Ella Davies,
foi publicada no dia anterior pela BBC britânica.
O xis da
questão é um registro científico algo inusitado: um zoólogo japonês (Shin-ya Ohba, da Universidade de Kyoto) documentou uma barata-d´água se alimentando de uma tartaruga jovem. Registro
valioso, mas que por aqui deu apenas margem para matérias problemáticas. A
versão em português da matéria contém alguns erros e mal-entendidos que não
aparecem na matéria da BBC britânica. Os problemas aparentemente foram
introduzidos durante o processo de tradução e edição do original,
presumivelmente de responsabilidade do pessoal da BBC Brasil. Nesse caso, as
editorias de Ciência do Estado e da Folha teriam apenas dormido no ponto e engolido mosca.
Mutantes
assassinos?
Um problema
grave da versão em português é que ela sequer esclarece o que são baratas-d´água. O texto informa
que o inseto em questão pertence ao gênero Kirkaldyia
(como também à subfamília Lethocerinae e à ordem Hemiptera), mas essas informações, além de incompletas, por
si só não esclarecem a questão, ao menos para o leitor leigo. A palavra
“percevejo”, que poderia facilitar o processo de identificação, não é citada
uma única vez.
O texto também reproduz
erros de linguagem, como chamar serpentes (snakes,
no original) de “cobras” e informar que integrantes da subfamília Lethocerinae são encontrados em “lagoas de água fresca,
lagos e córregos de baixa velocidade, além de rios”, quando o certo seria falar
em “lagoas de água doce, lagos, córregos e rios de águas lentas” (freshwater ponds,
lakes and slow-moving streams and rivers, no
original). A expressão “lagoas de água doce” ressalta que esses insetos não
vivem em lagoas de água salgada ou salobra; enquanto a expressão “córregos e
rios de águas lentas” sugere que eles não são encontrados em córregos ou rios
de águas rápidas.
Além de erros de linguagem,
há erros de conteúdo. Os problemas são tais que, ao final da leitura, um leitor
não familiarizado com o assunto pode ficar com a falsa impressão de que o
inseto em questão é: 1) uma barata gigante de hábitos aquáticos; 2) um inseto
voraz que voa à noite atrás de suas presas; 3) uma barata carnívora que subjuga
e devora suas presas por meio de um “bico”; e 4) um inseto perigoso (mais um!) que pode atacar seres humanos dentro da água.
Nesse ponto,
faltaria pouco para que alguns leitores concluíssem que o referido inseto é um
verdadeiro “mutante assassino”. Afinal, quando se fala em Japão hoje em dia,
muitos de nós imediatamente pensamos no grave acidente nuclear que ocorreu
recentemente naquele país. Quem sabe, então, se o inusitado registro obtido
pelo zoólogo japonês já não seria um indício de que a radiação ionizante liberada pelo acidente foi suficientemente alta a
ponto de induzir o aparecimento de aberrações genéticas?
Sugadora
e mastigadora
Apesar do
nome, as baratas-d´água não
são propriamente baratas, e sim, percevejos. A
denominação popular, comum em todas as
regiões brasileiras, é usada em alusão a diversas espécies de médio a grande
porte (5-
Existem
milhares de espécies de percevejos (a maioria das quais é de hábitos
exclusivamente terrestres), todas elas incluídas na ordem Hemiptera.
Esta ordem abriga, além dos percevejos, vários outros insetos, como as
cigarras, as cigarrinhas e os pulgões. Em termos zoológicos, os percevejos e
demais hemípteros estão arranjados ao lado de tripes
(ordem Thysanoptera); piolhos (Phthiraptera)
e piolhos-de-livro (Psocoptera). As evidências
disponíveis sugerem que essas quatro ordens descendem de uma mesma linhagem
ancestral caracterizada pelo tipo de metamorfose (o ciclo de vida consta de
três estágios: ovo, ninfa e adulto) e pela presença de peças bucais do tipo sugador.
Paralelamente,
teria ocorrido a evolução de outra linhagem de insetos com esse mesmo tipo de
ciclo de vida, mas que se diferencia da linhagem anterior pela presença de
peças bucais do tipo mastigador. Na opinião de alguns
estudiosos, esse segundo grupo incluiria 11 ordens de insetos viventes: pleocópteros (ordem Plecoptera);
cupins (Isoptera); baratas, incluindo as conhecidas
baratas domésticas (Blattodea); louva-a-deuses
(Mantodea); griloblatódeos
(Grylloblattodea); gladiadores (Mantophasmatodea);
bichos-pau e bichos-folha (Phasmatodea); embiópteros (Embiidina);
gafanhotos, esperanças e grilos (Orthoptera); tesourinhas (Dermaptera) e zorápteros (Zoraptera).
Cabe
registrar que, além das 15 ordens mencionadas até aqui, a classe Insecta – que reúne todos os insetos (viventes e fósseis) –
abriga ainda quase duas dezenas de outras ordens, entre as quais a dos besouros
(Coleoptera); a das borboletas e mariposas (Lepidoptera); a das moscas, mosquitos e pernilongos (Diptera); a das vespas, abelhas e formigas (Hymenoptera) etc.
Mais rigor
Baratas e baratas-d´água, como se vê, não só
pertencem a ordens distintas, como estão relativamente afastadas em termos
evolutivos. Não é de estranhar, portanto, que elas tenham caracteres e hábitos
de vida tão diferentes. As baratas, por exemplo, possuem um par de mandíbulas,
com as quais cortam, trituram ou maceram seus itens alimentares; são onívoras
(alimentando-se tanto de vegetais como de animais) ou detritívoras;
a grande maioria é terrestre e umas poucas são aquáticas ou semi-aquáticas. As baratas-d´água, por sua vez,
possuem um aparelho bucal do tipo picador-sugador chamado rostro,
com o qual penetram e sugam os fluídos do corpo de suas presas; são predadores
carnívoros, alimentando-se, sobretudo, de outros insetos, moluscos, peixes e
anfíbios; são exclusivamente aquáticos ou semi-aquáticos.
O termo “rostro” não aparece na versão em português da matéria,
embora conste da versão original. Foi uma omissão deliberada, não um erro de
tradução. Os editores, ao que parece, fizeram isso tendo em vista a fluidez do
texto, mas terminaram cometendo uma barbeiragem. Se o termo “rostro” necessita de explicação adicional, talvez bastasse
descrevê-lo como “aparelho bucal semelhante a uma seringa” ou apenas informar
que as baratas-d´água
possuem um “rostro semelhante a uma seringa” (syringe-like rostrum,
no original). O que os editores não deveriam ter feito foi justamente o que
acabaram fazendo: descrever o aparelho bucal das baratas-d´água como um “bico semelhante a uma seringa”.
“Bico” é um
termo mais ou menos informal aplicado a certas projeções rijas presentes em
torno da cavidade bucal de alguns animais, incluindo moluscos cefalópodes
(lulas etc.), tartarugas e, sobretudo, aves. Em todos esses casos, a estrutura
se caracteriza por permitir que o portador manipule os itens alimentares; em
nenhum deles, o bico por si só funciona como estrutura usada para sugar ou
aspirar fluídos, a exemplo do que faz uma seringa. É sabido que algumas aves
são capazes de sugar fluídos, mas isso ocorre devido à
participação de uma língua muscular com estruturas especializadas. De resto,
muitas espécies de aves utilizam o bico para cortar, triturar ou macerar o
alimento, mais ou menos como as baratas e outros insetos fazem usando as suas
mandíbulas. Em termos de analogia, portanto, o bico teria muito mais a ver com
um alicate, por exemplo, do que com uma seringa.
Embora os
diretores de redação em geral costumem argumentar que correm contra o tempo e,
por isso, às vezes, erros e mal-entendidos passam despercebidos, não custa
repetir (ver, neste Observatório, “Nem sempre é culpa da mídia“): os
responsáveis pela publicação de material técnico ou de divulgação científica
deveriam se preocupar mais com o rigor e a boa apresentação das traduções que
oferecem aos seus leitores.