DISSONÂNCIAS
CONCEITUAIS
Felipe A. P. L. Costa (*)
La Insignia. Brasil, abril
del 2004.
Matéria recém-publicada pela Agência Estado (AE) -
'Guia mostra 273 espécies de pássaros na metrópole' [1] - repetiu, já na
manchete, um erro (grosseiro) muito comum na mídia brasileira: empregar a
palavra 'pássaro', quando o correto seria 'ave'. Uma chamada ilustrada,
acompanhando a foto de uma ave de rapina, insistia no erro: 'Pássaros colonizam
a cidade'. Nas palavras do repórter:
Hoje,
São Paulo abriga 273 espécies de pássaros, que podem ser vistos nos bairros e
parques mais arborizados e nos arredores das reservas florestais. O bem-te-vi,
o periquito e o sabiá-laranjeira são as espécies mais comuns.
Há
mais de um problema nesse parágrafo, mas vamos focar na questão inicial: o
objetivo da matéria era chamar a atenção do leitor para a publicação de um guia
das aves (e não só dos pássaros) encontradas na cidade de SP. O título do
livro? Simples: 'Guia de campo: Aves da Grande São Paulo'. O repórter e/ou o
editor, pelo jeito, brincaram com as palavras como se elas fossem sinônimos, e
não são.
Jornalistas
não gostam de ser criticados ou corrigidos, muito menos em público, nem mesmo
quando escrevem bobagens e erram. A situação torna-se particularmente irritante
(do ponto de vista do jornalista) quando o puxão de orelha parte de um,
digamos, 'acadêmico' - nesse caso, é comum ouvir do repórter que a matéria na
qual ele está trabalhando não será lida apenas por especialistas e coisa &
tal.
Em
todo caso, é absolutamente incomum ver algum graúdo da mídia brasileira
reconhecer e simplesmente pedir desculpas em público por erros (grosseiros)
cometidos; ao contrário, há sempre uma desculpa esfarrapada para as maiores
barbeiragens ditas ou escritas. (Na transmissão de eventos esportivos, então, a
tragédia quase sempre vira comédia...) Como todos (ou quase todos) os
profissionais agem assim, a verdade sobre os fatos, inclusive em torno das
questões mais polêmicas, torna-se apenas o resultado de uma disputa na base do
grito: a 'verdade' é o berro de quem grita mais alto, em meio a uma gritaria
generalizada. Sem critérios ou parâmetros rigorosos, a coisa toda descamba;
assim, dependendo do jornal ou da emissora, chegamos a ouvir versões e comentários
diametralmente opostos para um mesmo evento.
No
que segue abaixo, aproveito o gancho e listo 12 pares de termos que
habitualmente são utilizados de modo inapropriado na mídia. (Alguns, inclusive,
aparecem na referida matéria da AE.) Muitos desses erros e mal-entendidos, é
bom que se diga, vão parar onde não deviam: nas páginas de nossos livros
didáticos de Ciências e Biologia.
Aí
vai a lista:
1. Ambiente ou hábitat? Hábitat é um lugar no
espaço, cujas dimensões podem ser estabelecidas em função de interesses
arbitrários do observador e independentemente de um referencial biológico
particular. Uma poça d'água, uma praia e uma floresta são exemplos de hábitats.
Já a definição de ambiente só faz sentido em função de uma ou outra entidade
biológica (um indivíduo, uma população, uma comunidade etc.) que sirva como
referencial; o ambiente de um indivíduo, por exemplo, é o conjunto de elementos
com os quais ele interage (co-específicos, inimigos naturais, presas etc.) ou
que de algum modo o afetam (elementos físicos, como temperatura e água). Assim,
embora centenas de milhares de organismos (co-específicos ou não) possam
conviver em um mesmo hábitat geral (um trecho de floresta, por exemplo), cada
um deles tem seu próprio ambiente particular [2].
2. Ave ou pássaro? O primeiro é um nome que se
aplica indistintamente a todos os integrantes da Classe aves (vertebrados que
possuem o corpo coberto de penas), da qual faz parte a Ordem passeriformes,
cujos membros são chamados de pássaros, passarinhos ou aves canoras. Cerca de
metade das 9 mil espécies conhecidas de aves são pássaros. As aves de rapina
(águias, caracarás, carrapateiros, falcões, gaviões, urubus) não são pássaros;
a ave de rapina escolhida para ilustrar a referida chamada da AE pertence à
ordem falconiformes [3].
3. Biodiversidade ou
natureza?
Natureza pode ser definida como a totalidade de objetos físicos (vivos ou não)
presentes no Universo. Em sentido restrito, a palavra também tem sido empregada
para qualificar objetos que não foram construídos ou afetados pela ação humana
- quando então passariam a ser classificados como 'artificiais'. Biodiversidade
é um conceito bem mais restrito e localizado: refere-se ao conjunto de objetos
vivos existentes no Universo e, até onde sabemos, a Terra é o único lugar
conhecido habitado por seres vivos - quer dizer, fora daqui, a biodiversidade
do Universo é igual a zero (ou quase isso). [Ao que tudo indica, as geringonças
que americanos e europeus colocaram em Marte não vão alterar essa conclusão;
elas servem mais como relações públicas.]
4. Bioma ou ecossistema? Biomas são as grandes
'paisagens vivas' existentes no planeta, definidas em geral de acordo com o
tipo dominante de vegetação. A Caatinga, o Cerrado e a Floresta Atlântica são
exemplos de biomas, não de ecossistemas. Ecossistema é um conceito mais
funcional e diz respeito ao conjunto formado por uma comunidade ecológica e a
matriz física (elementos do ar, solo e água) na qual a comunidade está
inserida. Cada bioma abriga quantidades (a priori) desconhecidas de
ecossistemas.
5. Camuflagem ou mimetismo? Em termos ópticos,
coloração críptica ou camuflagem é quando o aspecto geral do corpo de um
organismo se confunde com algum elemento do fundo, quer o fundo seja ou não um
outro ser vivo. Exemplos: um gafanhoto que se confunde com folhas ou uma aranha
que se confunde com a areia do chão. Mimetismo é quando o aspecto geral do
corpo de um organismo (mímico) torna-o parecido com indivíduos de uma segunda
espécie (modelo), a ponto de ambos serem confundidos por um determinado
observador (digamos, uma ave predadora). Ao contrário da camuflagem, no
mimetismo as espécies envolvidas interagem, havendo benefícios mútuos
(mimetismo mülleriano) para as espécies envolvidas ou benefícios apenas para o
mímico, com eventuais prejuízos para o modelo (mimetismo batesiano). No
mimetismo mülleriano, duas ou mais espécies (co-mímicas), consideradas
impalatáveis para um determinado elenco de predadores, convergem para um
aspecto semelhante comum. No mimetismo batesiano, um mímico palatável imita
(i.e., 'parasita') o aspecto de um modelo impalatável, ganhando assim uma certa
proteção contra predadores 'ingênuos'. Em tempo: mimetismo não é um fenômeno
restrito ao mundo animal; há casos conhecidos de mimetismo entre flores, por exemplo
[4].
6. Cobra ou serpente? Serpente é o nome que se
aplica indistintamente a todos os répteis integrantes da Ordem serpentes (=
ophidia), répteis escamosos desprovidos de patas funcionais. Em nosso idioma, a
palavra 'cobra' deveria ser aplicada apenas para algumas serpentes asiáticas,
particularmente espécies do gênero Naja
[5].
7. Comunidade ou sociedade? O termo comunidade tem uma
história de uso bastante flexível na literatura ecológica, quase sempre para
caracterizar um agrupamento de espécies que convivem em um mesmo lugar.
Sociedade é um termo usado para caracterizar certos tipos de agrupamentos
co-específicos. Formigueiros, colméias e vespeiros são exemplos de sociedades.
8. Conservação ou
preservação?
Enquanto alguns empreendimentos envolvem a conservação efetiva da
biodiversidade, outros lidam apenas e tão-somente com a sua preservação. No
primeiro caso, a preocupação é garantir a continuidade do processo evolutivo,
no qual todas as populações naturais vivem mergulhadas; para alcançar esse
objetivo, é preciso proteger comunidades ecológicas inteiras, como acontece,
por exemplo, quando resguardamos amostras representativas de hábitats dentro de
reservas e parques. Já nas atividades de preservação, a preocupação está mais
voltada para o bem-estar imediato de indivíduos ou grupos de indivíduos que
estão vivendo fora do seu hábitat natural; como ocorre, por exemplo, em jardins
botânicos, aquários, zôos e bancos genéticos, nos quais sementes, gametas e
outros materiais biológicos podem ser estocados por períodos prolongados de
tempo. No Brasil, a distinção que normalmente se faz entre conservação e
preservação tem um caráter mais ideológico do que propriamente biológico.
Leva-se em conta, por exemplo, a presença ou o tipo de relação que populações
humanas mantêm com o lugar, em geral sem uma preocupação explícita com as
implicações evolutivas do empreendimento em questão. Assim, enquanto
conservacionistas afirmam ser difícil compatibilizar a proteção integral da
vida selvagem com a presença de populações humanas, preservacionistas dizem que
questões ambientais e sociais estão definitivamente interligadas e são por isso
mesmo indissociáveis. Neste sentido, biólogos e outros profissionais que
trabalham no campo tendem a ser adeptos da conservação, enquanto
administradores, políticos e outros profissionais de gabinete geralmente falam
em favor da preservação [6].
9. Especiação ou evolução ? Especiação é um processo de
mudança evolutiva, por meio do qual uma espécie dá origem a outras espécies.
Evolução envolve especiação, mas não se restringe a ela.
10. Peçonha ou veneno? Aranhas, escorpiões e
serpentes são exemplos de animais peçonhentos, não de animais venenosos.
Animais peçonhentos são capazes de inocular substâncias venenosas em outros
seres vivos - por exemplo, substâncias paralisantes em suas presas. Diz-se que
um organismo (planta, animal ou fungo) é venenoso quando partes do seu corpo
contêm substâncias que provocam efeitos negativos (envenenamento ou
intoxicação) em algum consumidor que tenta abocanhá-lo. Não exitem plantas
peçonhentas; comigo-ninguém-pode é um exemplo, ao lado de tantos outros
representantes do reino vegetal, de uma planta venenosa ou tóxica. Em resumo:
peçonha é inoculável, veneno é ingerível [7].
11. População ou espécie? Uma definição popular entre
os biólogos diz que "espécies são agrupamentos de populações naturais
intercruzantes, reprodutivamente isoladas de outros grupos com as mesmas
características" [8]. Populações são coleções de indivíduos de uma mesma
espécie, que vivem temporariamente em um mesmo lugar.
12. Selvagem ou silvestre? No nosso idioma, a palavra
'selvagem' tem uma história de uso mais ampla, no sentido de caracterizar
espécies (não-domesticadas) que vivem em seu hábitat natural. O termo
'silvestre' está mais atrelado à sua origem etimológica, fazendo referência às
espécies (vegetais ou animais) que vivem em hábitats florestais. Ouvimos com
freqüência expressões do tipo "a onça é um animal silvestre", por
exemplo, mas dificilmente ouvimos algum dizer "a baleia é um animal
silvestre". [A propósito, uma questão para pensar com o travesseiro: matar
baleias (ou tartarugas marinhas, focas etc.) é um (triste) exemplo de caça ou
de pesca?]
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Notas
(*) Biólogo (meiterer@hotmail.com), autor do livro Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003).
[1]
Clique em http://www.estadao.com.br/ciencia/noticias/2004/abr/01/180.htm
[2] Para discussão detalhada, ver Lewontin, R. C. 2002. A tripla hélice. SP,
Companhia das Letras.
[3] Sobre as aves brasileiras, ver Sick, H. 1997. Ornitologia brasileira. RJ,
Nova Fronteira.
[4] Ver outros detalhes em Ricklefs, R. E. 2003. A economia da natureza, 5a
edição. RJ, Guanabara Koogan.
[5] Ver Amaral, A. 1978. Serpentes do Brasil. SP, Melhoramentos & Edusp;
ver ainda Zug, G. R. 1993. Herpetology. San Diego, Academic Press.
[6] Para outros detalhes, ver Costa, F. A. P. L. 2003. Ecologia, evolução &
o valor das pequenas coisas. Juiz de Fora, Edição do Autor.
[7] Para discussão detalhada, ver Amaral, A. 1976. Linguagem científica. SP,
Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo.
[8]
Ver Mayr, E. 1978. Populações, espécies e evolução. SP, Cia. Editora Nacional
& Edusp.