O ESCÂNDALO DOS DOUTORES
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Abro meu e-mail e deparo com uma chamada intrigante: "A
PUC-SP [Pontifícia Universidade Católica] não discrimina doutores". Quem envia
a mensagem é a Assessoria de Comunicação Institucional (Acipuc): para meu
espanto, fico sabendo que muitas faculdades particulares se recusam a contratar
professores com título de doutor ou, mesmo, os despedem logo após a
defesa. E por quê? Porque um doutor ganha alguns reais a mais que um
mestre, e, este, mais do que um bacharel, licenciado ou especialista.
Dia seguinte: encontro na Ilustrada uma crônica de Moacyr Scliar, "Crime e
Castigo". O coordenador está passando uma descompostura no professor, cuja
freqüência a um curso de pós-graduação acaba de ser descoberta: como ousa ele
fazer tamanha bobagem? E dá-lhe ameaças! O professor, atônito, concorda em
desistir da pós ou, pelo menos, manter secreto o seu título quando o obtiver
-qualquer coisa, desde que não perca o emprego.
Conversas com colegas me fazem ver que o assunto não é, como havia pensado, uma
piada de mau gosto. A "discriminação contra os doutores", por motivos
que beiram o ridículo -mais R$ 10 por hora-aula-, na maioria das vezes é um dos
escândalos mais grotescos que encontramos nesse amontoado de aberrações em que se
converteu o ensino superior pago neste país. Custa a crer que o aperfeiçoamento
de um professor seja causa de demissão ou de não-contratação; no entanto é o
que vem acontecendo em inúmeras escolas particulares. Aqueles com quem
conversei a respeito estão receosos; temem ser postos no olho da rua se forem
identificados. Mas suas experiências são "amargas", como me disse um
deles.
Não basta, contudo, esfregarmos os olhos e nos indignarmos com esse absurdo.
É preciso refletir sobre o que ele
significa, sobre o descalabro que se instalou no setor pago do ensino superior.
O paradoxo torna-se ainda maior se lembrarmos que, nas últimas décadas, órgãos
como o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], a
Capes Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível (Superior) e a Fapesp
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São (Paulo) aplicaram centenas de
milhões de reais em bolsas de mestrado, doutorado e pós-doutorado, visando à
capacitação do pessoal docente e, por extensão, à melhoria do nível de ensino
no país.
Apenas uma fração dos que obtêm esses títulos podem ser absorvidos pelas
universidades públicas ou por escolas particulares que valorizam a titulação,
como as PUCs, FGVs e algumas (poucas) outras. Quando o recém-doutor envia seu
currículo ou vai fazer uma entrevista, descobre que seu título depõe contra
ele, que está "overqualified"...
Sabemos que, para credenciar um curso,
o Ministério da Educação exige, entre outras coisas, uma certa cota de doutores
e mestres no corpo docente; mas essa cota muitas vezes não é observada ou,
quando o é, portadores de certificados de especialização (curso no qual não é preciso
redigir uma tese) contam como mestres. Credenciado o curso, as verificações são
esparsas e complacentes, aceitando-se explicações esfarrapadas para a
insuficiência de pessoal titulado.
Estamos diante de uma concepção do ensino como mercadoria e da mão-de-obra que
produz essa mercadoria como fator meramente quantitativo, cujos custos devem
ser mantidos no patamar mais baixo possível.
A educação superior está estruturada como uma pirâmide: os alunos da graduação
são educados por alguém que já concluiu seus estudos universitários e que busca
na pós-graduação um complemento para
avançar na carreira. O título deveri a ser um diferencial capaz de decidir uma
contratação, como é nos concursos, mas
se verifica o oposto: contanto que sejam preenchidas as horas-aula, é mais lucrativo pagar menos e
selecionar um professor que tenha
apenas bacharelado, argumentando que a "cota" de titulados (10%, no
caso dos doutores) já está preenchida. E os alunos que se danem: desde que
paguem suas mensalidades, o que menos importa a quem lhes vende um diploma é a
qualidade do que for ensinado. Todos conhecemos "universidades" em
que, como nos clubes, para entrar no campus se passa um cartão pela catraca;
basta estar intramuros, ainda que na lanchonete ou no cabeleireiro, para
"ter presença" e não "estourar em faltas".
Conhecimento novo - A miopia dos donos dessas arapucas tem um componente de ganância e outro de ignorância,
esta a respeito da diferença entre um doutor e um mestre. Um doutor não é
apenas um mestre que escreveu mais uma tese; pelas regras da academia, ele pode
orientar candidatos a ambos os títulos porque é um especialista em sua área e
cujo trabalho foi avaliado publicamente
por uma banca na qual pelo menos dois componentes devem ser de outra
instituição.
Não estou idealizando o valor de um título: todos sabemos que há teses melhores
e piores, departamentos mais exigentes ou menos. Mas é lícito supor que alguém
que passou pelo duro teste de duas defesas de tese só pode enriquecer o curso
de graduação em que vier a dar aulas.
Outro equívoco que precisa ser dissipado diz respeito ao "binômio ensino e
pesquisa". Sem querer desqualificar a atividade depesquisador, deveríamos
reconhecer que muitos professores, titulados ou não, não possuem vocação para
produzir conhecimento novo, que é o que significa no sentido acadêmico a
palavra "pesquisa". Seu talento é transmitir o conhecimento já
existente, algo tão necessário quanto pesquisar, especialmente nos cursos de
graduação, nos quais se trata de equipar o aluno com o saber já acumulado
naquela área de estudo.
Preparar boas aulas não é o mesmo que pesquisar; se é preciso ler, informar-se,
planejar, isso não significa que quem assim procede seja um investigador
desbravando as fronteiras do conhecimento. Por vezes, podem coincidir na mesma pessoa um ótimo
pesquisador e um excelente professor; mas
isso é raro, e é injusto exigir que seja sempre assim.
Deveríamos valorizar a figura do bom professor, empenhado em realizar seu papel
da melhor forma possível. Disso, seguramente, faz parte a busca de
aperfeiçoamento por meio dos cursos de pós-graduação; esses professores
deveriam ser incentivados, e não punidos -é o mínimo que se pode pensar.
O mínimo necessário - Da mesma forma, os diplomas de nível médio deveriam ser
mais valorizados, melhorando o conteúdo dos cursos que os conferem e
desmistificando a idéia de que somente o diploma universitário conduz a um
futuro mais promissor. Inúmeros alunos de escolas particulares, sobretudo nos
cursos noturnos, não têm condições -nem desejam- de fazer mais do que o mínimo
necessário para obter um diploma. Por que os iludir, fazendo-os crer que, ao
terminar um curso de quarta categoria, estarão dando o salto para o sucesso
profissional?
Não seria mais digno e mais honesto reconhecer que um curso médio consistente
teria mais efeito, com um custo muito menor de tempo e de dinheiro?
Mas isso implicaria reconhecer de público o que todos sabem: inúmeras faculdades
particulares têm por objetivo principal o enriquecimento dos seus
proprietários, e, para alcançá-lo, estão dispostas a vender um serviço de
qualidade pavorosa.
O nível do que ali é ensinado só não é pior devido à dedicação de muitos
professores, que consideram sua missão utilizar a disciplina que lecionam, mesmo
que seja de cunho "técnico", p ara formar, na parca medida do possível, o espírito dos seus
alunos. É indigno que seus empregadores
faturem milhões economizando tostões.
Para terminar, uma sugestão concreta: que, no projeto de reforma universitária
atualmente em debate, sejam introduzidos dispositivos quefavoreçam a maior
capacitação do corpo docente, usando os tradicionais instrumentos empregados
pelos cavaleiros para fazer andar suas montarias
-
a cenoura e o chicote.
Cenoura: vantagens aos cursos que tenham maior proporção de professores titulados;
chicote: sanções disciplinares e monetárias (provavelmenteas únicas eficazes,
nesse território) contra os que, a cada ano,
não aumentarem aquela proporção até chegarem a um nível aceitável de titulados
- por exemplo, 50% de mestres e 30% de doutores. Quem sabe, ameaçando mexer no
bolso dos empresários do ensino, o escândalo da "discriminação dos
doutores" venha a se tornar mais uma das vergonhosas lembranças que o
Brasil esconde nos desvãos da sua memória. Por enquanto,
ele é uma chaga aberta e fede a gangrena.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2003200504.htm
21 março 2005.