O que os genes não podem fazer
MARCELO LEITE, COLUNISTA DA FOLHA
Este é o título de um livro sensacional, "What Genes Can't Do" (o que
os genes não podem fazer), lançado em 2002 pela editora do Instituto de
Tecnologia de Massachusetts, o MIT. Vai aqui como recomendação editorial. Não
venderia muito, mas prestaria excelente serviço cultural, ao contribuir para
elevar o nível da discussão sobre genética e biotecnologia no país.
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Resumo da ópera: não se faz um
César Lattes somente com o DNA
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Trata-se de uma obra espantosamente erudita (ainda mais espantosa é a
quantidade de erros de revisão). Lenny Moss, o autor, combina o conhecimento
técnico de um biólogo celular com o treino de um professor de filosofia da
Universidade de Notre Dame (EUA). O resultado é uma desconstrução da noção de
gene que deveria constituir leitura obrigatória no primeiro ano de todas as
faculdades de biociências.
O conceito corrente e simplificado de gene é o de uma seqüência de DNA no
genoma de um organismo que "codifica" uma proteína. Quer dizer, a
fileira de "letras" (bases nitrogenadas) com a "informação"
necessária para a célula sintetizar dada proteína, encadeando centenas ou
milhares de aminoácidos na ordem correta para que ela possa realizar uma dada
função.
Se a série de aspas no parágrafo anterior lhe causa incômodo, é proposital.
Elas servem para indicar que não passam de metáforas essas noções lingüísticas
sobrepostas à de gene, embora pareçam hoje intuitivas até para o público leigo.
A contribuição de Moss é de-senredar esse emaranhado de conceitos, em que
realidades celulares e bioquímicas se entretecem com simbologias de sabor
pré-formacionista e até esotérico, como na popular idéia de que o genoma é o
Livro da Vida. O destino não está nos genes, que não são nem texto, nem
programa de computador.
Moss afirma que o problema está na mescla de dois conceitos. Um ele chamou de
Gene-P (de "pré-formacionista"), essa idéia de que na coleção de
genes se encontra "tudo que é necessário para construir um ser humano".
É a nova encarnação da noção antiga de que o plano completo do organismo que se
desenvolve do ovo já está contido nele ou num dos gametas que lhe deram origem.
O ícone dessa concepção é o homúnculo agachado na cabeça de um espermatozóide,
uma das "provas" no clássico debate dos séculos 17 e 18 entre
pré-formacionistas e epigenesistas (adeptos do surgimento espontâneo de
estruturas ao longo do processo de desenvolvimento).
O outro conceito isolado por Moss é justamente o de Gene-D (de
"desenvolvimento"). Ou seja, aquele em que a seqüência do DNA
representa só um recurso necessário para o desenvolvimento de um organismo, do
ovo ao adulto. Necessário, mas não suficiente, pois seria um recurso
desenvolvimental entre outros, como a maquinaria celular provida pelo
citoplasma do gameta feminino (óvulo), o cuidado parental, ou o nicho
ecológico.
Esse seria o conceito operacionalmente vivo nos laboratórios, segundo Moss. A
mistura dos dois conceitos só serviria a uma coisa: inflar retoricamente a
potencialidade da genômica.
Resumo da ópera: não se faz um César Lattes somente com o DNA de um Cesare
Mansueto Giulio Lattes.
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