Ernst Mayr, 100 anos
http://www.lainsignia.org/2005/febrero/cyt_002.htm
Felipe A. P. L. Costa (*)
La Insignia. Brasil, fevereiro de
2005.
Chegar aos 100 anos de
idade é algo raro entre os seres humanos. Ainda mais raro é chegar a essa idade
lúcido e saudável. Muito mais raro é completar um século de vida lúcido,
saudável e com força e disposição suficientes para continuar brigando pelas próprias
idéias. Trata-se de algo verdadeiramente excepcional e que deveria ser saudado
por todos nós, mesmo quando não concordamos inteiramente com as idéias do
aniversariante. Em 5 de julho de 2004, foi assim: o biólogo evolucionista Ernst
Mayr completou 100 anos de idade - lúcido, saudável e discutindo e escrevendo
sobre ciência, mais precisamente sobre biologia. Ainda no segundo semestre de
2004, ele publicou What makes biology unique? Considerations on the autonomy
of a scientific discipline (Cambridge University Press), mais um de uma
série aparentemente interminável de livros.
Infelizmente, porém, seus
próximos livros agora serão póstumos: Ernst Mayr (1904-2005) faleceu na última
quinta-feira (03/02), nos Estados Unidos, conforme divulgou no dia seguinte o
boletim Harvard University Gazzete
http://www.news.harvard.edu/gazette/daily/2005/02/04-mayr.html. Soube da
notícia ontem (04/02), primeiro por meio da Agência Estado ("Morre
Ernst Mayr, maior evolucionista do século 20"
http://www.estadao.com.br/ciencia/noticias/2005/fev/04/161.htm), para logo em
seguida perceber que notas e artigos mais detalhados já estavam na Rede - ver,
por exemplo, o artigo "Ernst Mayr dies", publicado em The
scientist http://www.biomedcentral.com/news/20050204/01 [1].
Nova síntese
Mayr era o derradeiro
representante vivo de um grupo de grandes cientistas que trabalhou na
sedimentação dos pilares de um edifício chamado Nova Síntese: a fusão da teoria
ecológica da seleção natural com a teoria genética da herança particulada. Embora
as duas tenham sido originalmente elaboradas em meados do século 19 - a
primeira por Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913), a
segunda por Gregor Mendel (1822-1884) - ambas permaneceram afastadas (e às
vezes em conflito!) até as primeiras décadas do século 20. Foi a aproximação e
a gradativa combinação dessas duas grandes teorias que resultou no surgimento
da Nova Síntese - ou, como também costuma ser chamada, Teoria Sintética da
Evolução ou Neodarwinismo.
Esse empreendimento foi
fruto do trabalho de uma série de cientistas, incluindo os pioneiros (cujos
trabalhos começaram a aparecer nas décadas de 1910-1930) Sewall Wright
(1889-1988), Ronald A. Fisher (1890-1962) e J. B. S. Haldane (1892-1964),
culminando mais tarde (décadas de 1930 e 1940) com os esforços de Julian S.
Huxley (1887-1975), Theodosius Dobzhansky (1900-1975), Bernhard Rensch
(1900-1990), George G. Simpson (1902-1984), G. Ledyard Stebbins (1906-2000) e,
claro, do próprio Ernst Mayr.
Quatro desses nove
cientistas eram essencialmente geneticistas (Wright, Fisher, Haldane,
Dobzhansky), um era paleontólogo (Simpson), dois eram sistemátas (Huxley,
Mayr), outro era biólogo do desenvolvimento (Rensch) e apenas um era
propriamente ecólogo (Stebbins). Isso não deixa de ser intrigante,
principalmente se levamos em conta que a teoria da evolução por seleção natural
é uma teoria essencialmente ecológica [2]. Nesse sentido, vale lembrar aqui que
a teoria hereditária defendida por Darwin e muitos de seus contemporâneos, a
chamada teoria da herança por mistura, mais tarde se revelaria equivocada - um
erro de conseqüências até certo ponto irrelevantes e que serve para
exemplificar o papel secundário da genética no âmbito da teoria da evolução por
seleção natural.
Da
biologia naturalista à filosofia da ciência
Em terreno estritamente
biológico, quatro noções clássicas formuladas e/ou sedimentadas por Mayr são as
seguintes: (i) a noção de espécie como uma entidade real, em oposição, por
exemplo, aos conceitos arbitrários de gênero e família; (ii) o isolamento
reprodutivo como uma barreira entre espécies (mecanismo que serviu de base para
a formulação do seu famoso conceito biológico de espécie); (iii) a especiação
alopátrica como o principal processo pelo qual novas espécies são geradas; e
(iv) o efeito do fundador (um caso extremo de deriva genética) e seu papel na
especiação "instantânea".
Embora esses conceitos
sejam rotineiramente ensinados a todos os jovens que almejam uma carreira
profissional como biólogo, há limitações sérias ou mesmo inconsistências em
todos eles, a saber: (i) muitos autores questionam a realidade das espécies,
mesmo entre organismos que se só reproduzem de modo sexuado; (ii) o isolamento
reprodutivo não é necessário nem suficiente para definir uma espécie; (iii) a
especiação não depende de alopatria; e (iv) a seleção natural seria a causa
primária da especiação [3].
Deixando essas questões de
lado, penso que, além do papel de destaque ocupado por Mayr na história da
biologia evolutiva, a herança deixada agora por ele envolve preocupações mais
filosóficas. Nas últimas quatro décadas, por exemplo, ele voltou-se e escreveu
cada vez mais sobre os fundamentos epistemológicos da biologia. E também aí
assumiu um papel pioneiro e de destaque. (Basta lembrar que a epistemologia era
até bem pouco tempo uma disciplina dominada por autores inclinados quase que
exclusivamente para os problemas da física.) Um sinal marcante do seu
envolvimento explícito com essa empreitada mais filosófica pode ser encontrada
em seu clássico artigo "Cause and effect in biology", publicado na
Science, em 1961. É nesse artigo que Mayr chama a atenção para a existência de
"duas" biologias: a biologia funcional ou das causas imediatas, que
procura explicar como os fenômenos vitais ocorrem, e a biologia evolutiva ou
das causas remotas, que procura explicar porque os fenômenos vitais ocorrem do
jeito que ocorrem [4].
No momento, o leitor
interessado em ler alguma coisa de Mayr publicada no país terá de se contentar
com apenas duas obras [5]: Populações, espécies e evolução (1978,
Companhia Editora Nacional & Edusp), livro esgotado e fora do mercado há
bastante tempo, e O desenvolvimento do pensamento biológico: diversidade,
evolução e herança (1998, Editora da UnB). Curiosamente, porém, esses dois
livros representam bem o legado deixado por Mayr: o primeiro, que é meio uma
versão atualizada e condensada de uma outra obra sua famosa (Animal species
and evolution, cuja primeira edição é de 1963), ilustra o seu lado como
biólogo de campo, enquanto o segundo é uma portentosa condensação histórica dos
fundamentos da biologia (levou quase 10 anos para ser concluído e originalmente
havia planos de um segundo volume), servindo para ilustrar suas ambições mais
filosóficas.
Ernst Mayr era viúvo e
deixa agora filhos, netos e bisnetos.
Notas
(*) Biólogo
meiterer@hotmail.com, autor do livro Ecologia, evolução & o valor das
pequenas coisas (2003).
1. Além da
Agência Estado, apenas O Globo deu uma nota ("Morre o biólogo Ernst Mayr,
aos 100 anos" http://oglobo.globo.com/online/plantao/166620117.asp),
equivocada e bem mixuruca, por sinal. Todavia, como o The New York Times
[acesso gratuito, mas pede cadastro] publicou um artigo em sua edição deste
sábado ("Ernst Mayr, pioneer in tracing geography's role in the origin of
species, dies at 100"
http://www.nytimes.com/2005/02/05/science/05mayr.html), é possível que agora a
mídia brasileira acorde e divulgue a notícia.
2. Sobre a escassez de cientistas com formação ecológica entre os pioneiros do
Neodarwinismo, ver Endler, J. A. & McLellan, T. 1988. The processes of evolution: toward a newer synthesis. Annual Review of
Ecology and Systematics 19: 395-421.
3. Para
detalhes, ver Mallet, J. 2001. The speciation
revolution. Journal of Evolutionary Biology 14: 887-888.
4. Para
uma detalhada discussão filosófica sobre a importância e o alcance do artigo de
Mayr, ver Ariew, A. 2003. Ernst Mayr's
'ultimate/proximate' distinction reconsidered and reconstructed. Biology and
Philosophy 18: 553-565.
5. No
final da década de 1970, a leitura do livro População, espécies e evolução foi
para mim um alento e algo profundamente inspirador. Além de ser uma leitura
informativa, acessível e bastante agradável, vivíamos naquela época em um
verdadeiro deserto bibliográfico - ao menos era assim para quem só pudesse
estudar ecologia em português e cursasse a graduação em uma universidade tão
fraca como a minha...