O químico
norte-americano Stanley Lloyd Miller (1930-2007),
falecido em maio último, aos 77 anos, foi um pioneiro no estudo experimental
das origens da vida. Graduado pela Universidade da Califórnia (Berkeley),
Estados Unidos, em 1951, Miller ingressou, no ano seguinte, na Universidade de
Chicago. Lá estudou sob a orientação de Harold C. Urey
(1893-1981), vencedor do Prêmio Nobel de Química em 1934 por suas pesquisas com
isótopos. Influenciado pelas idéias de Urey sobre as
condições predominantes na Terra pré-biótica (antes do surgimento da vida),
Miller decidiu submetê-las a teste, fazendo disso o tema de sua tese de
doutorado.
A princípio,
Urey relutou. Temia que seu aluno,
com um prazo relativamente curto pela frente, demorasse a obter resultados
expressivos ou que jamais os obtivesse. Miller insistiu. No fim das contas,
fizeram um acordo: Miller faria uma tentativa; caso não conseguisse resultados
promissores em alguns meses, procuraria outro tema para a sua tese.
O ponto de
partida para o experimento -hoje amplamente citado nos livros-texto como
experimento de Miller-Urey, embora a autoria do
artigo original seja apenas de Miller, como se verá a seguir- seria a
construção de um microcosmo que pudesse, até certo ponto, mimetizar em laboratório
as condições da Terra pré-biótica. O aparato construído era relativamente
simples, sendo formado por duas esferas de vidro (uma menor, capaz de armazenar
cerca de 0,5 litro de água, e a outra maior, com capacidade para 5 litros)
conectadas entre si por um sistema de tubos.
A esfera menor, que fazia o papel dos oceanos, continha água, mantida em ebulição
por uma fonte externa de calor (correspondente ao Sol). O vapor d'água produzido era conduzido por um tubo ascendente até a
esfera maior, que continha gases (metano, amônia, hidrogênio) e fazia o papel
de atmosfera. A esfera maior estava equipada com um par de eletrodos que
periodicamente liberavam descargas elétricas, como se fossem os relâmpagos da
atmosfera primitiva. O vapor d'água
- e os produtos das reações eventualmente ocorridas no interior da esfera maior
- fluía então por um tubo descendente, condensava-se e, por fim,
retornava à esfera menor.
Algumas
características do experimento eram simplificações claramente pouco realistas.
Manter a água da esfera menor em ebulição era uma delas. Manter a concentração
de gases bem acima dos níveis estimados para a atmosfera primitiva era outra.
Por que Miller e Urey admitiram tais simplificações?
Em poucas palavras, a resposta seria: para ganhar tempo. Manter o 'oceano' em
ebulição e aumentar a concentração de gases na 'atmosfera' acelerariam as
reações, permitindo que algum tipo de resultado fosse obtido em um prazo
relativamente curto - e não, digamos assim, após centenas ou mesmo milhares de
anos.
O aparato
foi então posto para funcionar ininterruptamente durante uma semana. Ao fim
desse período, o líquido acumulado na esfera menor foi examinado. Para surpresa
geral, os testes revelaram a presença de mais de uma dúzia de substâncias
orgânicas relativamente complexas, incluindo aminoácidos (glicina
e alanina), matéria-prima para a construção de
proteínas.
O impacto e
a importância desses resultados foram enormes. A razão para isso tem a ver com
o seguinte: o líquido obtido não era simplesmente uma mistura aleatória de
compostos químicos simples - e milhares desses compostos poderiam ter sido
formados a partir da matéria-prima utilizada. O fato de que foram encontrados
aminoácidos - e outras moléculas orgânicas complexas - em quantidades
expressivas sustenta a hipótese de que a síntese desses compostos seria
possível a partir dos gases presentes na atmosfera pré-biótica (rica
supostamente em metano, amônia, hidrogênio e água, ao invés de dióxido de
carbono, nitrogênio, oxigênio e água, como ocorre com a atmosfera atual), mas
também levanta a suspeita de que eles seriam relativamente abundantes nos
oceanos primitivos.
Os
resultados foram divulgados em um breve artigo de duas páginas, 'Produção de
aminoácidos sob possíveis condições da Terra primitiva', publicado na revista
científica americana Science, em 1953 [1]. (O mesmo
ano, aliás, em que a revista científica inglesa Nature
publicou o artigo de Francis Crick e James Watson
sobre a estrutura molecular do DNA.) Curiosamente, porém, o artigo apareceu
assinado apenas por Stanley Miller. Assumindo uma postura virtualmente
desconhecida no mundo acadêmico contemporâneo, Harold Urey
justificou a exclusão do seu nome - Miller o havia incluído como co-autor -,
declarando que ele próprio já era um autor bastante conhecido.
O
experimento de Miller-Urey despertou a imaginação e
estimulou o trabalho de outros pesquisadores mundo
afora, a ponto de ser referido hoje como um marco no estudo experimental das
origens da vida. Ao longo dos anos, o experimento foi refeito inúmeras vezes,
usando-se variadas combinações de gases e fontes de energia. Os resultados com
freqüência incluíam a síntese de substâncias orgânicas, como aminoácidos,
açúcares e bases nitrogenadas, em quantidades expressivas. Mesmo tendo recebido
críticas importantes (por exemplo, ao invés de redutora, como Miller supunha, a
atmosfera primitiva seria mais neutra que a atual), a principal mensagem do seu
experimento ainda está de pé: moléculas orgânicas complexas podem ser obtidas a
partir de condições inteiramente abióticas.
Tendo
desenvolvido sua carreira acadêmica na Universidade da Califórnia (San Diego), Stanley Miller continuou envolvido com a
chamada química pré-biótica, voltando-se também para o estudo da síntese de
nucleotídeos, a matéria-prima para a elaboração de moléculas de DNA. Em 1999,
ele sofreu um primeiro derrame cerebral. Continuou trabalhando por mais algum
tempo, mas logo se aposentou. Mudou-se então para uma casa de repouso em National City, cidadezinha próxima a San
Diego. Vítima nos últimos anos de uma série de derrames, faleceu em
conseqüência de problemas cardíacos. Não era casado nem teve filhos.