Criando um Monstro
Arnaldo Jabor
O que pode criar um
monstro? O que leva um rapaz de 22 anos a estragar a própria vida e a vida de
outras duas jovens por... Nada?
Será que é índole? Talvez,
a mídia? A influência da televisão? A situação social da violência? Traumas?
Raiva contida? Deficiência social ou mental? Permissividade da sociedade? O que
faz alguém achar que pode comprar armas de fogo, entrar na casa de uma família,
fazer reféns, assustar e desalojar vizinhos, ocupar a polícia por mais de 100
horas e atirar em duas pessoas inocentes?
O rapaz deu a resposta:
'ela não quis falar comigo'. A garota disse não, não quero mais falar com você.
E o garoto, dizendo que ama, não aceitou um não. Seu desejo era mais
importante.
Não quero ser mais um
desses psicólogos de araque que infestam os programas
vespertinos de televisão, que explicam tudo de maneira muito simplista e falam descontextualizadamente sobre a vida dos outros sem serem
chamados. Mas ontem, enquanto não conseguia dormir pensando nesse absurdo todo,
pensei que o não da menina Eloá foi o único. Faltaram
muitos outros nãos nessa história toda.
Faltou um pai e uma mãe
dizerem que a filha de 12 anos NÃO podia namorar um rapaz de 19. Faltou uma
outra mãe dizer que NÃO iria sucumbir ao medo e ir lá tirar o filho do tal
apartamento a puxões de orelha. Faltou outros pais dizerem que NÃO iriam
atender ao pedido de um policial maluco de deixar a filha voltar para o
cativeiro de onde, com sorte, já tinha escapado com vida. Faltou a polícia dizer NÃO ao próprio planejamento errôneo de
mandar a garota de volta pra lá. Faltou o governo dizer NÃO ao sensacionalismo
da imprensa em torno do caso, que permitiu que o tal sequestrador
conversasse e chorasse compulsivamente em todos os programas de TV que o
procuraram. Simples assim. NÃO. Pelo jeito, a única que disse não nessa
história foi punida com uma bala na cabeça.
O mundo está carente de nãos. Vejo que cada vez mais os pais e professores morrem
de medo de dizer não às crianças. Mulheres ainda têm medo de dizer não aos
maridos ( e alguns maridos, temem dizer não às esposas
). Pessoas têm medo de dizer não aos amigos. Noras que não conseguem dizer não
às sogras, chefes que não dizem não aos subordinados, gente que não consegue
dizer não aos próprios desejos. E assim são criados alguns monstros. Talvez alguns
não cheguem a sequestrar pessoas. Mas têm pequenos
surtos quando escutam um não, seja do guarda de trânsito, do chefe, do
professor, da namorada, do gerente do banco. Essas pessoas acabam crendo que
abusar é normal. E é legal.
Os pais dizem, 'não posso
traumatizar meu filho'. E não é raro eu ver alguns tomando tapas de bebês com 1 ou 2 anos. Outros gastam o que não têm em brinquedos todos
os dias e festas de aniversário faraônicas para suas crias. Sem falar nos
adolescentes. Hoje em dia, é difícil ouvir alguém dizer não, você não pode
bater no seu amiguinho. Não, você não vai assistir a uma novela feita para
adultos. Não, você não vai fumar maconha enquanto for contra a lei. Não, você
não vai passar a madrugada na rua. Não, você não vai dirigir sem carteira de
habilitação. Não, você não vai beber uma cervejinha enquanto não fizer 18 anos.
Não, essas pessoas não são companhias pra você. Não, hoje você não vai ganhar
brinquedo ou comer salgadinho e chocolate. Não, aqui não é lugar para você
ficar. Não, você não vai faltar na escola sem estar doente. Não, essa conversa
não é pra você se meter. Não, com isto você não vai brincar. Não, hoje você
está de castigo e não vai brincar no parque.
Crianças e adolescentes
que crescem sem ouvir bons, justos e firmes NÃOS crescem sem saber que o mundo
não é só deles. E aí, no primeiro não que a vida dá ( e a vida dá muitos ) surtam. Usam drogas. Compram armas.
Transam sem camisinha. Batem
Não estou defendendo a
volta da educação rígida e sem diálogo, pelo contrário. Acredito piamente que
crianças e adolescentes tratados com um amor real, sem culpa, tranquilo e livre, conseguem perfeitamente entender uma
sanção do pai ou da mãe, um tapa, um castigo, um não. Intuem que o amor dos
adultos pelas crianças não é só prazer - é também responsabilidade. E quem ouve
uns nãos de vez em quando também aprende a dizê-los
quando é preciso. Acaba aprendendo que é importante dizer não a algumas pessoas
que tentam abusar de nós de diversas maneiras, com respeito e firmeza, mesmo
que sejam pessoas que nos amem. O não protege, ensina e prepara.
Por mais que seja difícil,
eu tento dizer não aos seres humanos que cruzam o meu caminho quando acredito
que é hora - e tento respeitar também os nãos que
recebo. Nem sempre consigo, mas tento. Acredito que é aí que está a verdadeira prova de amor. E é também aí que está a solução para a violência cada vez mais desmedida e absurda
dos nossos dias.