PROGRAMA
DE FORMAÇÃO CONTINUADA “TEIA DO SABER”
DIRETORIA
DE ENSINO LESTE 5 — MÓDULOS I E II
CURSO “METODOLOGIAS DE ENSINO DE
DISCIPLINAS DA ÁREA DE CIÊNCIAS DA NATUREZA, MATEMÁTICA E SUAS TECNOLOGIAS DO
ENSINO MÉDIO: FÍSICA, QUÍMICA E BIOLOGIA” – CURSO EM CONTINUIDADE — INSTRUTOR:
FERNANDO SANTIAGO DOS SANTOS
CRISE NO ENSINO DE CIÊNCIAS?[1]
Gérard Fourez
gerard.fourez@fundp.ac.be
Dept "Sciences, Philosophies, Sociétés"
Cellulle EMSTES (Enseignement des Mathématiques et des Sciences,
Technologies, Ethiques, Société.
Facultés Universitaires de Namur
B 5000 Namur, Belgium
RESUMO
Este trabalho propõe uma
revisão crítica sobre os principais problemas enfrentados pelo ensino de
ciência na atualidade. Ele realiza uma reflexão sobre os objetivos da educação
científica e os desafios presentes na escola. As conclusões apontam para a
necessidade de uma redefinição da ciência escolar e na forma de condução das
atividades de ensino.
Palavras-chave: ensino de ciências; principais problemas; redefinição da
ciência escolar; atividades de ensino de ciências
INTRODUÇÃO
Há uns quinze anos, eu não
ousaria dizer que o ensino de Ciências estava
O que é menos fácil é dar uma
interpretação a esta crise. Ou ainda conceituar uma série de controvérsias que
a cercam. Este artigo evidenciará como, em torno desta crise, gravitam atores
que têm interesses às vezes conflitantes e alimentam controvérsias tanto sobre
os objetivos quanto sobre os meios da educação nas ciências.
PRINCIPAIS FATORES DA
CRISE DO ENSINO DE CIÊNCIAS NO MUNDO INDUSTRIALIZADO
Entre os atores dominantes
desta crise, eu cito: os alunos, os professores de ciências, os dirigentes da
economia, os pais, os cidadãos (trabalhadores manuais ou outros), etc.
As posições dos alunos
clarearam nestes últimos anos. O aumento de inscrições nas universidades de
língua francesa da Bélgica mostra que eles rejeitaram as faculdades de ciências
e até os ramos mais ligados à ação, mas com forte conteúdo científico
(engenheiro, por exemplo). Não que os jovens subestimem a importância e o valor
das ciências. Enquetes mostram que eles os consideram a maior parte do tempo
como realizações humanas de primeira importância. Eles não se abalam muito
pelos argumentos dos que imputam aos cientistas a bomba atômica, a poluição e
outros males. Mas eles não estão preparados para se engajar em estudos
científicos. Sua admiração pelos cientistas conduz os jovens a felicitá-los
pelo seu maravilhoso trabalho, e nada mais...
Muitos pensam que – e esta é
notadamente uma interessante análise produzida pelo O.C.D.E.[4] – no centro da crise, haveria uma questão de sentido[5] . Os alunos teriam a impressão de que se quer obrigá-los a ver
o mundo com os olhos de cientistas. Enquanto o que teria sentido para eles
seria um ensino de Ciências que ajudasse a compreender o mundo deles. Isto não
quer dizer, absolutamente, que gostariam de permanecer em seu pequeno universo;
mas, para que tenham sentido para eles os modelos científicos cujo estudo lhes
é imposto, estes modelos deveriam permitir-lhes compreender a “sua” história e
o “seu” mundo. Ou seja: os jovens prefeririam cursos de ciências que não
sejam centrados sobre os interesses de outros (quer seja a comunidade de
cientistas ou o mundo industrial), mas sobre os deles próprios[6]. É, aliás, significativo, que eles se voltem massivamente
em direção aos estudos superiores ligados ao social ou à psicologia, formações
das quais eles esperam ajuda para melhor compreender e viver em seu mundo.
Perto do que fazia ainda
minha geração, os jovens de hoje parece que não aceitam mais se engajar em um
processo que se lhes quer impor sem que tenham sido antes convencidos de que
esta via é interessante para eles ou para a sociedade. Isto vale para todos os
cursos, mas talvez ainda mais para a abstração científica. Minha geração estava
pronta a assinar em branco, sem ter certeza de que o desvio pela abstração nos
forneceria alguma coisa. Muitos jovens de hoje pedem que lhes seja
mostrado de início a importância – cultural, social, econômica ou outra – de
fazer este desvio. Mas nós, seus professores, estamos prontos e somos capazes
de lhes mostrar esta importância?
Vinculado a esta questão de
sentido, pode-se já evocar o debate relativo à ligação das ciências e das
tecnologias. Na Bélgica de língua francesa, os alunos – ao menos os da educação
básica – têm um curso de ciências que não é uma formação para as tecnologias.
Mais ainda, eles não recebem nenhuma formação para tecnologias. Apenas lhes é
dito que sua formação científica servirá para compreender aquelas. Isto pode
parecer um pouco rápido para alguns deles que não estão preparados para fazer o
desvio pelas ciências se os seus professores não se mostram capazes de
mostrar-lhes este sentido. Voltaremos mais tarde a este ponto.
O aumento recente do número
de estudantes se lançando em carreiras científicas nestes últimos anos mostra
que uma boa campanha publicitária e o argumento do emprego têm um efeito sobre
nossos jovens. Todavia este sucesso obtido à força dispensa de pesquisar por
que foram necessários estes argumentos externos para que os jovens fizessem
esta escolha?
Os professores de ciências
são duplamente atingidos. Inicialmente, como todos os professores, eles têm
de se “virar” face à crise da escola e à perda de poder e de consideração de
sua profissão. Eles também têm que enfrentar questões próprias aos professores
de ciências. Pede-se a eles que mostrem efetivamente o sentido que pode haver
no estudo de ciências para um jovem de hoje. Ora, a formação dos licenciados
esteve mais centrada sobre o projeto de fazer deles técnicos de ciências do que
de fazê-los educadores. Quando muito, acrescentou-se à sua formação de
cientistas uma introdução à didática de sua disciplina[7] . Mas nossos licenciados em ciências, como nossos regentes de
então[8], quase não foram atingidos, quando de sua formação, por
questões epistemológicas, históricas e sociais. Seus estudos não estão muito
preocupados em introduzi-los nem à prática tecnológica, nem à maneira como
ciências e tecnologias se favorecem, nem às tentativas interdisciplinares. Eles
confundem freqüentemente tecnologia e aplicação das ciências ou a aplicação de
um sistema experimental. Quanto à interdisciplinaridade, apenas raramente lhes
ensinamos como fazer intervir, para resolver uma situação problemática, as
disciplinas pertinentes, sejam elas de ciências naturais ou humanas. No melhor
dos casos, eles praticaram a interdisciplinaridade, mas sem engajar uma
reflexão sistemática a seu respeito. Muitos limitam, além disso, a noção de
interdisciplinaridade ao cruzamento de disciplinas científicas escolares
(física, química, biologia). Em resumo, sua formação fez, grosso modo, um
impasse sobre a maior parte dos preceitos que permitiriam analisar o sentido de
um trabalho científico. Há também uma defasagem entre a formação e as
exigências da situação.
Não é de surpreender, em um
tal contexto, que os professores de ciências se sintam tão desprovidos
face à crise do ensino de sua disciplina, e que muitos entre eles se refugiem
em sua disciplina.
Quanto aos dirigentes de
nosso mundo econômico e industrial, eles lamentam muito ao ver diminuir o
número de jovens que se engajam em carreiras com forte base científica. Os
empresários se inquietam com a falta de engenheiros e outros cientistas. Suas
associações se engajam em campanhas publicitárias. Eles quase não se incomodam
com o detalhe, mas destacam a importância de dispor de cargos científicos e
tecnológicos. O mundo industrial testemunha assim, que, se não se leva em conta
os limites descritos pelas ciências e tecnologias, corre-se o risco de não mais
produzir riquezas em quantidades suficientes para satisfazer nossas
necessidades crescentes. Freqüentemente, enquanto isso, o mundo industrial só
vê as dimensões técnicas e econômicas deste problema de sociedade (as que a
formação de engenheiros privilegia). Alguns estimam, além disso, que a crise
das profissões científicas provém principalmente do fato de a carreira de
engenheiros não ser mais tão lucrativa, e minimizam as causas culturais do
desinteresse constatado.
Muitos pais de alunos,
preocupados com o emprego futuro de seus filhos, concordam fortemente com o
ponto de vista do mundo econômico, embora uma análise mais apurada, em
função dos meios sociais, fosse oportuna.
Se consideramos agora o
conjunto de cidadãos, podemos nos perguntar onde eles se situam em
relação às ciências e às tecnologias. Eles se sentem capazes de compreender a
maneira como o cientista-técnico condiciona sua existência? Conseguem manter
uma distância crítica suficiente em relação a ele, tal que eles possam negociar
com as tecnologias e com as representações do mundo veiculadas pelas ciências?[9] . Ou, ao contrário, a maioria dos cidadãos é unicamente capaz
de utilizar as receitas que lhe são dadas pelos especialistas? Eles não
abandonam, do mesmo modo, toda perspectiva de ser algo diferente de executores
de uma política e de uma visão tecnocrática? O que se faz hoje para formar
cidadãos que participem inteligentemente em debates políticos sobre temas
fortemente impregnados de questões científicas, como a eutanásia, a política
energética, a atitude frente aos drogados, etc.?
Notemos, enfim, que, para a maior parte dos cidadãos, a única coisa que importa
verdadeiramente é o desenvolvimento tecnológico. Se perguntamos na rua quais
são os grandes avanços recentes das ciências, a resposta gira em torno de
técnicas médicas, da conquista do espaço e da informática... todas disciplinas
que os cientistas classificariam mais como tecnológicas do que científicas.
SOBRE ALGUMAS CONTROVÉRSIAS LIGADAS À CRISE DO ENSINO DE CIÊNCIAS
Como pano de fundo desta
evocação da crise do ensino de ciências, pode-se apontar diferentes
controvérsias quanto a suas finalidades e seus métodos. A apresentação feita
por mim não se pretende isenta de preconceito: ela veicula uma representação da
crise sobre a qual o leitor deverá se situar. Cada uma das controvérsias é
exposta aqui sob a forma de uma polarização. Esta metodologia, evidentemente
contestável, tem a vantagem e o inconveniente de caricaturar bem o debate. Face
aos ângulos da caricatura, é preciso lembrar que, na prática, os professores conseguem
freqüentemente construir excelentes acordos em torno do que parece impossível
de conciliar no discurso. Aliás, as polaridades expostas aqui abaixo não são
praticamente nunca adotadas sob sua forma extrema. Mas elas estruturam os
discursos de justificação de boa parte das práticas de ensino.
QUANTIDADE DE
MATÉRIA VERSUS QUALIDADE DA FORMAÇÃO
Esta polarização aparece
sobretudo quando os professores discutem programas a estabelecer ou a ensinar.
Para alguns – e estes são às vezes os que são muito atentos ao sentido do
ensino – o importante é que os alunos conheçam bastante os resultados
científicos que lhes permitam compreender a unidade do mundo que nos cerca.
Assim, pode-se estimar que não compreender o funcionamento de uma fossa séptica
ou o sistema da digestão, ou as propriedades dos desentupidores de sanitários,
ou a produção de energia pelo sol, ou a teoria da evolução, ou o princípio do
fax, etc, são falhas significativas em uma sociedade como a nossa. De tal
posição resulta uma tendência a acusar os programas. A isso outros respondem
que, de qualquer maneira, os alunos não conhecerão jamais tudo o que poderia
ser útil para sua inserção em um mundo técnico-científico. Vem daí a posição
que considera preferível ver a fundo alguns elementos, de modo a bem adquirir
os métodos e as atitudes; aos quais se acrescentará uma sólida formação à
prática da transferência de modelos e de intervenções de um contexto a outro.
Mas se aceitará no aluno grandes lacunas de conhecimentos, desde que ele se
documente sobre pontos precisos quando isso for necessário. A tensão entre
estas duas perspectivas se exprime bastante bem nos termos de um dilema que se
diz vir da China: “O que vale mais: dar um peixe ou ensinar a pescar?” Mas é
preciso saber que só se aprende a pescar pegando peixes (mesmo que a
aprendizagem da pesca não se limite a esta prática). Só se aprende um método
científico estudando questões particulares. Resulta que certos professores são
mais polarizados quanto aos resultados a ensinar, e outros quanto aos métodos[10]. Além disso, alguns programas contêm um acúmulo de matérias
por camadas históricas, já que os criadores destes programas mostram
dificuldade para abandonar tal conteúdo ou tal modelo. Do ponto de vista dos
alunos, estes programas parecem ao mesmo tempo difíceis e ultrapassados.
ALFABETIZAÇÃO CIENTÍFICA E
TÉCNICA, VERSUS AS PROEZAS CIENTÍFICAS
Esta polarização concerne às
finalidades do ensino de ciências. A problemática pode se manifestar pelo exame
dos valores promovidos pelos concursos do gênero “juventudes científicas”[11] . Efetivamente, este tipo de concurso pode privilegiar seja a
capacidade para utilizar os saberes das disciplinas a fim de enfrentar
situações da existência (o que às vezes é chamado de ponto de vista “cidadão”),
seja a proeza científica (isto é, a capacidade de responder a questões
difíceis, ancoradas na perspectiva de uma disciplina). Cada uma destas
perspectivas tem sua importância. A primeira visa sobretudo à formação, à
inserção e à capacidade criativa do cidadão na sociedade. A seu respeito
fala-se seguidamente de alfabetização científica e técnica. A segunda
privilegia a formação de especialistas e tem seu lugar sobretudo à margem das
especializações escolares dos que decidiram fazer uma carreira em que ciências
e tecnologias estão envolvidas.
Os cursos de ciências que visam
à formação de cientistas se ramificam em física, química, biologia. Os que
visam à formação cidadã (e talvez a da maioria dos jovens), falam de ambiente,
de poluição, de tecnologia, de medicina, de conquista espacial, da história do
universo e dos seres vivos, etc. São duas orientações diferentes.
A perspectiva da
alfabetização científica[12] pode-se expressar em termos de finalidades humanistas,
sociais e econômicas.
Os objetivos humanistas
visam à capacidade de se situar em um universo técnico-científico e de poder
utilizar as ciências para decodificar seu mundo, o qual se torna então menos
misterioso (ou menos mistificador). Trata-se ao mesmo tempo de poder manter sua
autonomia crítica na nossa sociedade e familiarizar-se com as grandes idéias
provenientes das ciências. Resumindo, trata-se de poder participar da cultura
do nosso tempo.
Os objetivos ligadosao social: diminuir as desigualdades produzidas pela
falta de compreensão das tecno-ciências, ajudar as pessoas a se organizar
e dar-lhes os meios para participar de debates democráticos que exigem
conhecimentos e um senso crítico (pensamos na energia, na droga ou nos
organismos geneticamente modificados). Em suma, o que está em jogo é uma certa
autonomia na nossa sociedade técnico-científica e uma diminuição das
desigualdades.
Os objetivos ligados ao
econômico e ao político: participar da produção de nosso mundo
industrializado e do reforço de nosso potencial tecnológico e econômico. A isto
se acrescenta a promoção de vocações científicas e/ou tecnológicas, necessárias
à produção de riquezas.
Desta maneira, pode-se destacar as diferenças entre duas perspectivas
freqüentemente opostas, mas complementares: a que visa à formação do cidadão e
a que visa à preparação de especialistas.
Entretanto, não é garantido
que a melhor maneira de obter muitas vocações científicas seja centrar sobre as
disciplinas. Pode-se, com efeito, suspeitar que os cursos de ciências centrados
muito cedo nas especialidades não motivam tantos jovens para uma carreira
científica. Alguns entre eles, de fato, experimentam um déficit de sentido
quando se quer deste modo embarcá-los no mundo dos cientistas. E há um problema
evidente na formação dos professores: ela nem sempre os ajudou a poder mostrar
como a visão dos cientistas não é necessariamente um fim em si, mas uma
mediação para melhor decodificar o mundo e dele participar. Resumindo, a
maneira de fazer funcionar a complementaridade entre estas duas abordagens
ainda está por ser encontrada. De qualquer modo, quanto às finalidades, a
tensão existe entre os que vêem a Alfabetização Científica e Técnica de todos
como objetivo primeiro e os que preferem visar com prioridade à formação dos
futuros cientistas. Entretanto, alguns se perguntam se a melhor maneira de
alcançar este último objetivo não é dar a prioridade ao primeiro: se é dado a
muitos o sentido do que se pode fazer com as ciências, as vocações científicas
poderiam se desenvolver.
UMA ALFABETIZAÇÃO C. &
T. INDIVIDUAL OU COLETIVA[13]
Uma tensão aparece também
quando se trata de ver se é o indivíduo ou uma coletividade que se quer capacitar
para se “virar” no nosso mundo técnico-científico. A tradição de nosso ensino
pensa espontaneamente em educar o indivíduo. É geralmente desta forma que a
escola espera fazer de cada aluno um cidadão. Concretamente, todavia, nunca é
inteiramente só que se afronta a realidade, mas também em grupo, em comunidade
humana, em sociedade organizada. Assim, a competência de um laboratório de
pesquisa não corresponde à soma das competências individuais, mas à maneira
como estas se articulam e se completam. De modo semelhante, se faz sentido
dizer que tal aluno tem uma representação da alimentação no café da manhã, de
forma a poder administrar suas decisões sobre isto, também faz sentido dizer
que uma classe adquiriu uma cultura compartilhada sobre este ponto, de maneira
que seus alunos podem discutir sobre isto, sensatamente. Então, o sujeito da
alfabetização científica não é mais o indivíduo isolado, mas o grupo. Da mesma
forma, uma coletividade local pode ser “alfabetizada” em relação à construção
de uma indústria poluidora, ou em relação a uma política frente às drogas. Isto
significa que foi instaurada nesta comunidade uma cultura (formada de saber,
saber-fazer e saber-ser) permitindo uma discussão pertinente da situação.
Nestas condições, um debate democrático torna-se possível.
É importante, então, na
perspectiva que acabamos de evocar, distinguir a alfabetização científica e
técnica individual e coletiva. A escola, classicamente, só considera a
primeira. Contudo, em uma perspectiva de sociedade, é a segunda a mais
significativa. É ela que visa a que a diversidade das competências em um grupo
consiga se escutar mutuamente e instaurar uma cultura de comunicação como de
deliberação que integre nos debates de sociedade o que tanto os especialistas
cientistas quanto os diversos usuários têm a oferecer.
Se a escola se preocupasse mais com a alfabetização científica e técnica dos
indivíduos e dos grupos, ela trataria de proporcionar aos alunos a experiência
de ter participado de uma coletividade praticando um debate. Ter vivido, desta
forma, tal experiência, confere uma competência da qual se pode preparar
explicitamente a transferência para outras situações. Assim, um grupo
alfabetizado cientificamente e tecnicamente em relação a uma família de
situações pode se tornar consciente de que aquilo que a competência (chamada às
vezes de knowhow) adquire, em relação a este conjunto de situações pode ser
transferido para um outro. Por exemplo, tendo adquirido uma cultura relativa à
alimentação no café da manhã, os alunos podem se tornar confiantes de que
poderiam praticar uma operação semelhante frente aos meios de transporte de sua
cidade. E assim por diante.
Há, portanto, em relação à
alfabetização científica e técnica, uma polarização entre duas atitudes
educativas: a que promove a formação do indivíduo e reforça o seu poder, e a
que visa a fortificar a cultura cidadã das coletividades. Uma não anda sem a
outra, mas pode-se perguntar se ocorre com freqüência que um ensinamento seja
pensado com o objetivo de criar uma cultura de grupo que capacite uma
coletividade para deliberar mecanismos sociais e políticas de decisões
científicas e técnicas (ou outros tipos de decisões que implicam ciências ou
tecnologias).
CIÊNCIAS DE SITUAÇÕES E MATERIAIS PUROS OU CIÊNCIAS DE TODOS OS DIAS
À questão de saber se será
privilegiada a alfabetização científica ou a perspectiva das profissões
científicas, vincula-se a dos materiais de experiências e de situações
estudadas[14] Serão privilegiados os materiais e os aparelhos que se pode
comprar na loja de quinquilharias ou na drogaria da esquina ou os dos
fornecedores de laboratórios? A química ensinada, por exemplo, será sobretudo a
das substâncias puras (que se adquire em um fornecedor especializado) ou a de
todos os dias (que se encontra em casa e na cozinha)? O ensino será ligado às
situações correntes ou às de laboratório? Tudo sem, por isso, negligenciar a
importância das substâncias puras e das situações de laboratório. Partir-se-á
da realidade vivida cotidianamente ou daquela que os cientistas já
conceituaram?
ENSINO DAS CIÊNCIAS E MEIOS SOCIAIS
As ciências veiculam uma maneira de teorizar o mundo que as situa
diferentemente segundo as classes sociais. Os dirigentes de empresas não se
enganam quando reivindicam sólidas formações científicas e destacam que a
importância destas disciplinas reside especialmente na aprendizagem de uma
realidade dura e inexorável. Esta capacidade de objetivação do mundo e de
considerá-lo fora de seu contexto afetivo e social sem dúvida origina ao mesmo
tempo a força da burguesia burguesa e a do pensamento científico[15] . Não é por nada, talvez, que há um ar de parentesco entre o
discurso de um ministro das finanças anunciando novos impostos e o do professor
de matemática introduzindo seu curso. Ambos falam do rigor dos números e das
lógicas implacáveis, aos quais é preciso se curvar.
Eu não me deterei aqui a
analisar o papel ideológico das matemáticas e das ciências na nossa sociedade
tecnocrática, mas gostaria de dizer algumas palavras sobre a posição dos alunos
de diversas classes sociais face a estas disciplinas.
Parece-me que dois eixos devem ser destacados. O primeiro está ligado à
distinção entre os ramos científicos e literários. O segundo concerne à relação
entre a cultura científica e a cultura popular.
Um aluno vindo de uma classe
social pouco privilegiada tem geralmente a impressão de ter, quanto às
disciplinas ditas literárias, relações ambíguas. A língua francesa e os outros
ramos do mesmo gênero parecem-lhe o lugar dos privilégios culturais. Há
freqüentemente o sentimento de que as regras do jogo lhe escapam. As filhas e
os filhos dos que possuem estes bens culturais aprendem em casa toda uma série
de competências que quase não se ensina em aula – até mesmo são proclamadas
não-ensináveis[16] . É o mesmo caso para algumas competências relativas às
ciências que são bastante gerais ou que exigem o estabelecimento de relações
(como o bom uso dos especialistas, a redação de um relatório, a negociação da
precisão, a prática interdisciplinar, etc.). Para os filhos de uma família
pouco favorecida culturalmente (a menos que eles sejam excepcionalmente
brilhantes), este universo de competências gerais é percebido como o dos
“outros”, dificilmente acessível e freqüentemente injusto. O mundo das
matemáticas e das ciências lhes aparece facilmente como mais justo, mais claro,
e até mais honesto. Lá, ao menos, os dados não parecem viciados, e as regras,
se se consegue apreendê-las, são bem claramente definidas. Tem-se menos a
negociar face a um problema de física bem colocado do que face a uma
dissertação a redigir. Todavia, insistir sobre esta “honestidade” das ciências
tem seu lado perverso: pois as separamos então das competências transferíveis
necessárias para ultrapassar o ponto de vista do técnico executor. Resulta que
as ciências aparecem como mais abordáveis que a literatura, da qual se dirá de
bom grado que é só uma tagarelice.
Desta maneira e indo na
direção oposta às considerações precedentes, o mundo dos cientistas, com sua
lógica implacável, está bem distanciado da cultura popular. A aculturação nas
matemáticas e ciências não é fácil para os meios em que os valores afetivos são
importantes. Estas disciplinas são, efetivamente, marcadas por uma perspectiva
de domínio e de gestão racional do mundo. Elas aparecem facilmente como frias
e, por isso, empurram o estudante de origem popular para fora de seu meio. Se,
além disso, a união da teorização com as finalidades concretas não é bem clara,
o mundo científico parece ao mundo popular como um universo com caráter
desumano e tendo um grande déficit de sentido, ainda que continue fascinante e
mais “honesto” que o mundo da literatura.
Ao aceitar estas análises, a
didática das ciências deveria considerar – bem mais do que ela faz atualmente –
diferenças de abordagens ligadas às diversas posições sociais e aos aspectos
exteriores que se ligam a ele. Pedindo para abstrair (ou seja, para esquecer as
particularidades de uma situação) não se pede a mesma ação cultural para a filha
de um operário e a de um diretor de fábrica. Isto gera também uma controvérsia
entre os professores de ciências. Há aqueles para quem o importante é ensinar
as ciências, e ponto final. E aqueles para quem a sua tarefa de educadores
leva-os a falar com os alunos que vivem, quanto às ciências e às matemáticas,
tensões sociais e afetivas.
POSSIBILIDADE DE FORMAR
PARA COMPETÊNCIAS BASTANTE AMPLAS
Quando se está mais interessado pela alfabetização científica ou pela formação
nos métodos do que pela acumulação de resultados, rapidamente se é levado a se
interrogar sobre a maneira de formar para competências bastante gerais, tais
como: “saber construir uma representação clara (um “modelo”) de uma situação
concreta”; “saber utilizar os especialistas”; “saber cruzar, para compreender
uma situação, conhecimentos padronizados das ciências e das abordagens
singulares de usuários”; “saber quando vale a pena aprofundar uma questão e
quando é melhor se contentar – ao menos provisoriamente – com uma representação
mais simples”; “saber avaliar o nível de rigor com o qual convém abordar uma
situação precisa”; “saber o bom uso das linguagens e dos saberes padronizados”;
“saber utilizar os saberes estabelecidos para esclarecer uma decisão ou um
debate”; “saber testar a representação que se tem de uma situação,
confrontando-a tanto à experiência quanto aos modelos teóricos”, etc. Uma
polarização existe sobre estas competências, alguns as considerando como um
objeto de ensino, outros não.
Há praticamente unanimidade
entre os especialistas das ciências da educação ao considerar que tais
competências não são aprendidas de um modo geral, mas sim partindo de casos e
contextos particulares, modelando-as e transferindo-as em seguida a uma família
mais extensa de situações. Aprendem-se estas competências gerais praticando-as
sob orientação de alguém que as domine e que tenha delas uma representação que
permita discernir as lacunas e guiar a aprendizagem.
Para perceber que estas competências podem ser ensinadas, pode-se partir do fato
de que, geralmente, é possível que encontremos indicadores de que elas não são
adquiridas (mesmo se, freqüentemente, de início, só raramente somos capazes de
conceituar estes indicadores). Desta forma, não temos muita dificuldade para
ver que alguém não adquiriu o bom uso dos especialistas – mas nos é mais
difícil dizer o porquê. Ou: nós podemos ver que alguém não consegue alcançar um
nível de rigor adequado para a situação que se quer representar.
Uma vez percebido que nós
possuímos implicitamente alguns indicadores do domínio de tais competências,
torna-se possível ver que entre ensinar estas competências e outras, mais
clássicas, como “resolver uma equação do segundo grau”, as diferenças não são
essenciais. Isto porque, antes que se consiga formalizar o que a resolução das
equações do segundo grau implica, o ensino a este respeito pode parecer tão
desfocado que se assemelhe à competência “ter o bom uso dos especialistas”
antes que esta tenha sido conceituada.
Resta então que a
controvérsia continua aberta entre os que sustentam que estas competências que
se aplicam às maiores famílias de situações não podem ser ensinadas e os que
julgam que elas podem, ainda que com mais dificuldade, já que não se dispõe de
uma tradição didática a respeito delas.
Notemos, concluindo sobre
este ponto, que, com freqüência, a tese da “não-ensinabilidade” destas
competências gerais tem conseqüências sociais. Ela conduz praticamente a
considerar que os alunos devem adquirir estas competências sozinhos, ou a
esperar que sejam formadas sobre estes pontos em família – posições
profundamente elitistas... Desta forma, se não se ensina na escola como
organizar o seu trabalho (ou como se utiliza um computador, ou como se consulta
um especialista), os alunos que provêm de famílias em que isto é ensinado serão
profundamente privilegiados.
LUGAR DO TEÓRICO E DA
EXPERIMENTAÇÃO
Perguntar a um grupo de
professores de ciências se eles são a princípio teóricos ou experimentais
desencadeia em geral uma resposta clara que ressalta o caráter experimental do
caminhar científico. Várias razões fortificam esta posição. Inicialmente, há o
papel decisivo da experiência na intervenção: é ela, em última instância, que
deve fazer aceitar ou rejeitar um modelo científico[17]. Em seguida, este chamado à autoridade da experiência é
destinado a “fechar o bico” de outras autoridades, especialmente letrados
ou religiosos. Enfim, o elo da experimentação com o trabalho manual é mais
valorizado entre os professores que se vangloriam freqüentemente de se situar
politicamente mais à esquerda.
Contudo, esta valorização –
legítima – da experiência pode mascarar o caráter abstrato, concebedor e
teórico das ciências. Depois de tudo, o que o cientista pesquisa primeiro não é
uma habilidade treinada, mas a construção de encenações de nossas situações.
Trata-se de inventar (de criar!) representações das quais se espera que – como
um mapa rodoviário – possam ocupar o lugar do real nas discussões. Quando se
dispõe de representações “adequadas” (que podem ser equações, leis, modelos,
descrições, mapas, plantas, teorias, etc., dos quais se dirá que explicam o
real) e se sabe utilizá-las, torna-se possível e sensato discutir a partir mais
da representação do que da situação (como se discute um itinerário a partir do
mapa e não explorando o terreno). O objetivo das práticas científicas não é,
portanto, o de fazer experiências, mas o de construir e saber se servir de
representações adequadas, testadas e padronizadas das situações em que agimos.
E, quando uma representação funciona mal, as ciências procuram construir uma
outra que eles colocarão à prova experimentando-a (ou seja: eles a testarão)
para ver até que ponto estas representações abstratas permitem agir no
concreto. No centro das práticas científicas, há esta pesquisa de um modelo que
poderá ocupar o lugar da situação que se estuda. Porque não há nada de mais
concreto e de mais prático[18] que uma teoria adequada (como nada de mais eficaz que um bom
mapa). Há também uma relação dialética entre a teoria e a experiência, entre a
teoria e a prática[19].
Enquanto isso, a maior parte dos testes que um cientista realiza na sua prática
não é experimental, mas teórica: é primeiro confrontando seu modelo com outros,
bem estabelecidos, que o pesquisador o testa. Em outras palavras, antes de
testar experimentalmente um modelo, examina-se se ele é teoricamente plausível.
Mas é preciso ir mais longe e se interrogar sobre o que há por trás do termo
“experiências”. Trata-se inicialmente de protocolos fortemente formalizados ou
de ensaios? No primeiro caso, a insistência se dirigirá sobre a precisão formal
e as hipóteses claras a testar; no segundo, trata-se mais de ensaios e o
aspecto heurístico é mais desenvolvido. Os dois pólos são seguramente necessários
na formação, mas sem dúvida aquele que é o mais desenvolvido na vida corrente e
na pesquisa científica é o dos ensaios. E, entretanto, poucos manuais de
ciências apresentam os ensaios culinários como uma maneira de praticar a
experimentação científica. Este termo é, muito seguidamente, reservado às
experiências que têm menos relação com a vida cotidiana. Alguns pensam que isto
é uma pena.
LUGAR DAS TECNOLOGIAS
Hoje, quando se fala de
objetivos e do sentido do ensino de ciências, geralmente se faz também
referência às tecnologias. Contudo, em muitos sistemas de ensino de países
industrializados – e especialmente na Comunidade Francesa da Bélgica – não há
praticamente nenhuma formação séria
Ora, o mundo dos alunos não é
absolutamente este “mundo natural”. Eles vivem em uma tecno-natureza. O que a
princípio faz sentido para eles, não é o mundo desencarnado dos cientistas, mas
a natureza tal como ela existe no seio de um universo de finalidades. Isto a
que são confrontados os alunos são situações em que tecnologias e natureza
estão articuladas, em um universo de finalidades.
Como os cursos de ciências abordam
este universo? A ideologia dominante dos professores é que as tecnologias são
aplicações das ciências. Quando as tecnologias são assim apresentadas, é como
se uma vez compreendidas as ciências, as tecnologias seguissem automaticamente.
E isto apesar de que, na maior parte do tempo, a construção de uma tecnologia
implica em considerações sociais, econômicas e culturais que vão muito além de
uma aplicação das ciências. A compreensão desta implicação do social na
construção das tecnologias torna possível um estudo crítico destas, como o
fazem os trabalhos de avaliação social das tecnologias (technology assessment).
Uma formação para a negociação com as tecnologias deve tornar os alunos capazes
de analisar os efeitos organizacionais de uma tecnologia (por exemplo, os da
aparição de um fax em um serviço, de um forno de microondas em uma família, ou
de uma torre de mais de 400m de altura
Em torno destas considerações se projeta um debate a realizar sobre o lugar a
ser dado, no ensino secundário, a uma formação para a representação e gestão
das tecnologias.
Quando e como se ensina aos
alunos a representar o mundo não “natural”, mas tecno-natural, aquele onde eles
vivem concretamente? Como mostrar-lhes que as representações das disciplinas
científicas podem ajudá-los a decodificar este mundo, que tem para eles
significações diretas? Mas como também mostrar-lhes a distância que há entre o
objeto técnico descrito por uma disciplina científica e a tecnologia com
toda a sua complexidade social, cultural, política e econômica (complexidade
que faz com que a tecnologia nunca seja socialmente neutra, visto que ela gera
e supõe uma organização social).
Não é em torno de questões
deste tipo que funciona também a questão do sentido, de que muitos dizem criar
problemas no ensino das disciplinas científicas? Conseguimos mostrar
suficientemente aos alunos que a encenação do mundo pelos físicos, químicos,
biólogos, geólogos e outros é inadequada para compreender o mundo tecnológico
na sua dinâmica global? Entretanto, assim como constatava o vice-presidente da
Associação do Commonwealth dos professores de ciências, tecnologias e
matemática[20] : “Para ser eficaz, o programa deve estar relacionado com a
experiência cotidiana do aprendiz e deve então ser pertinente e útil no
contexto local e regional[21] . Em contrapartida, “a idéia de que as ciências, a tecnologia
e as matemáticas, mas sobretudo as ciências, são disciplinas sem contato com a
realidade (...) dissuade numerosos grupos de aprendizes de escolher uma destas
disciplinas e de prosseguir o estudo desta”.
CIÊNCIAS CONSTRUÍDAS A
PARTIR DE UMA OBJETIVIDADE DE CIENTISTA OU DE UM PROJETO HUMANO: VÁRIOS
SENTIDOS PARA A NOÇÃO DE REPRESENTAÇÃO[22]
Um outro debate relativo ao
ensino de ciências concerne à visão epistemológica que se tem de sua
construção. Isto faz considerar duas maneiras de pensar a noção de
representação. A primeira julga que uma representação é como uma imagem exata
do real: seu espelho. Dizer que uma representação é verdadeira é, portanto,
afirmar que ela reflete bem a realidade. Mas pode-se também falar de uma
representação como da construção humana que, em certos debates, pode ocupar o
lugar de uma situação. Nesta segunda maneira de ver, a representação não é
absolutamente o espelho da realidade; ela é como um “mapa”. É um artefato
humano, é uma técnica, é uma encenação em função de objetivos. No primeiro
caso, a representação-reflexo funciona independentemente de qualquer finalidade
humana. No segundo, trata-se de uma encenação feita por humanos, para humanos
em função de objetivos.
Esta dualidade de visões se
reflete na concepção que se tem das finalidades do ensino de ciências. Para
alguns, elas devem ser ensinadas porque são – ao menos provisoriamente – as
melhores representações do mundo que temos. A idéia subjacente é que há uma
verdade sobre o mundo que se deve procurar, encontrar e ensinar. Este modo de
ver está ligado às filosofias científicas nas quais as ciências asseguram um
pouco a continuidade das religiões para garantir uma base sólida à ordem
social. O marxismo, aliás, é marcado por esta tendência, na medida em que sua
pretensão a uma análise científica da história parece às vezes com a pretensão
a deter dela a única verdade. Face a esta maneira de ver, uma outra perspectiva
considera as ciências como construções de representações sempre ligadas a um
contexto e a uma finalidade. Deste ponto de vista, não se falará mais de uma
verdade global a encontrar, mas sim de construir: uma encenação de situações,
em função de projetos a executar. Não é mais o caso de uma representação única
do verdadeiro, mas sim de uma multiplicidade de concepção e de modelização
possíveis da mesma situação que se trata de encenar.
Do ponto de vista didático,
de um lado pede-se ao aluno que adquira a única verdade, que existe
independentemente de qualquer ponto de vista, de qualquer finalidade, e de todo
projeto do sujeito. A ciência parece com uma religião que se impõe. Do outro
lado, trata-se de construir ou de se apropriar das representações. As ciências
têm o aspecto de um processo de invenção e de criatividade realizada pelos
humanos e para os humanos. Para retomar a comparação dos mapas, a primeira
perspectiva procuraria o “verdadeiro” mapa de um território enquanto que a
segunda consideraria uma multiplicidade de mapas que podem ser todos válidos,
mesmo se – em função de interesses específicos – uns pudessem ser mais
interessantes do que outros[23].
A TRANSFERÊNCIA E OS
LIMITES DAS LEIS, DOS MODELOS, DAS ABORDAGENS E DOS INSTRUMENTOS
Alguns professores de áreas técnicas insistem para que os alunos só utilizem um
instrumento para os objetivos em vista dos quais ele foi construído. Não há
então nenhuma valorização de seu uso com uma outra finalidade ou em um outro
contexto, seguido a uma atitude inventiva que tenha aberto novas
possibilidades. Estes professores não se dão conta de que os melhores técnicos
são os que conseguem trabalhar adequadamente em quaisquer condições[24] (assim como fazem, às vezes com virtuosismo, os
mecânicos de Touring Secours).
Na mesma inspiração, certos
professores de ciências não aceitam que se adapte um modelo a um outro
contexto: eles acusam esta prática de transferência de falta de rigor. A isto,
outros replicam – sobre boas bases históricas – que a maior parte dos
desenvolvimentos científicos foi provocada por tal transferência. Surge daí a
controvérsia entre os que gostariam que os alunos aceitassem inteiramente as
normas de rigor de cada disciplina e os que julgam mais importante ensiná-los a
transferir modelos, métodos, conceitos e caminhos – correndo o risco, às vezes,
de perder alguma coisa do ponto de vista do rigor formal. Uma outra forma da
mesma controvérsia se exprimirá no dilema: “É preciso se limitar ao ensino das
disciplinas ou deve-se ultrapassar as fronteiras disciplinares?”
FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE
CIÊNCIAS
O conteúdo da formação
inicial dos professores de ciências também é objeto de um debate. Se há
consenso quanto à importância de um sólido conhecimento da disciplina[25] , se há um amplo acordo para a formação em didática, as
posições são divergentes quanto à utilidade de uma formação em epistemologia em
história das ciências e nas abordagens interdisciplinares face às situações
complexas ou às questões fundamentais provocadas pelos modelos científicos.
Tendo em vista a mínima parte em acordo com estas abordagens, as universidades
não parecem lhes dar muita importância. Talvez haja uma ligação entre esta
posição de fato das universidades e a impressão que têm não poucos alunos de
que há um déficit de sentido em seus cursos de ciências.
ADAPTAR-SE AO PEQUENO
MUNDO DO ALUNO OU ABRIR-LHE UM MUNDO MAIS AMPLO
Quando se defende a tese de que os cursos de ciências devem tornar os alunos
capazes de ler o seu mundo, fica-se facilmente exposto à censura por deixá-los
em sua bolha e sua pequena sociedade, enquanto que seria necessário, ao
contrário, abri-los a todo o universo, à grande sociedade, e a uma
cientificidade que resiste aos efeitos ideológicos! É, de fato, difícil negar
que, com freqüência, os jovens se isolam no oásis de seu pequeno mundo, por
medo de se confrontar com os conflitos de nossa sociedade. Eles ficam então à
mercê da ideologia dominante (que é geralmente um misto da ideologia espontânea
dos dominantes e a dos dominados, misto arranjado de modo que a reprodução
social se faça). É por isso, dirão alguns, que não é preciso procurar muito
para ver o que tem sentido para o aluno, mas é necessário convidá-lo a entrar
no universo das ciências, as quais resistem aos efeitos da ideologia dominante
(sempre esperando que elas não engendrem demasiadas ideologias tecnocráticas).
Outros, entretanto, responderão que este universo científico tem pouca
pertinência se ele não permite se confrontar com o mundo no qual nós vivemos.
Ou, em outras palavras, se é verdade que não há nada de mais prático que uma
boa teoria, ainda é necessário que ela seja boa, ou seja, ela permita ler nosso
mundo: o mesmo onde nós vivemos. Não se trata, portanto, de ficar “mundinho do
aluno”, adaptando-se a ele, mas sim de construir um ensino de ciências e de
tecnologias que se articule com este mundo e consiga analisá-lo.
A respeito destas reflexões
sobre a abertura a um mundo mais vasto que o “pequeno” mundo dos alunos, convém
lembrar o que foi dito acima quanto à diferença de posição das classes
populares e das classes privilegiadas em relação a esta questão.
ENSINO DAS DISCIPLINAS
CIENTÍFICAS E INTRODUÇÃO ÀS ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES
Na prática, para se representar adequadamente uma situação concreta, é raro que
baste uma só disciplina[26] . Este pode ser o caso no quadro limitado de um laboratório ou
em uma sala de operação, ou ainda quando se trata de montar o sistema elétrico
de uma peça (entretanto, mesmo neste caso “simples”, o problema implica
geralmente em questões de segurança, de estética, de contabilidade, etc.). Em
uma situação menos visada, contudo, como o isolamento térmico de uma habitação
ou a compra de um carro, é necessário chamar diversas disciplinas para se dar
uma representação pertinente do que se passa.
É assim que nos acontece
freqüentemente de fazer interdisciplinaridade como M. Jourdain fazia prosa.
Aliás, a interdisciplinaridade não é o desdém das disciplinas mas, ao
contrário, a utilização destas para esclarecer uma situação. Daí a questão
seguidamente debatida entre professores de ciências: vai-se ensinar aos alunos
como conduzir abordagens interdisciplinares, ou vai-se limitar a ensinar-lhes
as disciplinas? Para os defensores da primeira opção, começar cedo as práticas
interdisciplinares é fundamental para que os alunos percebam como as
disciplinas encontram seu sentido, fornecendo uma abordagem parcial mas
rigorosa das situações estudadas. Em contrapartida, os que pensam que é preciso
se ater a uma abordagem disciplinar restrita destacam a importância que pode
ter a aquisição de bases sólidas em ciências antes de abordar problemas complexos.
CONCLUSÃO E RESUMO
O objetivo deste artigo era
mostrar algumas artimanhas relativas ao ensino de ciências. Admitindo-se, como
o faz hoje a maioria, que há crise, ele esboçou uma lista de grupo de atores
ligados a esta tensão social. O conteúdo de diversos conflitos, tensões ou
controvérsias foi em seguida desenvolvido. Emerge uma imagem do ensino de
ciências bem mais complexa do que a que aparece na maioria dos cursos de
didática destas disciplinas. Daí, uma questão final: não seria a hora de a universidade
e as escolas superiores formarem professores de ciências para a análise das
implicações sociais do ensino de suas disciplinas?
Enfim, pode ser bom lembrar que a noção de “crise” em caracteres chineses se
escreve unindo dois ideogramas: o que significa “perigo” e o que significa
“possibilidade” ou “oportunidade”. Pode-se aplicar esta maneira de escrever à
crise do ensino de ciências...
[1]
Tradução de Carmen cecília de Oliveira. (volta
para o texto)
[2]
Discurso do Reitor Boucher (Mons), Le Soir 24/9/97; Doyen Pierre Maurage
(U.L.B.) Le soir 28/10/99 ; les doyens des facultés des Sciences belges
francophones, Le Soir 25/6/98 ; K. Uytendaele de Fabrimétal, Le Soir, 25/2/00 ;
Ministre Dupuis, Le Soir, 30/3/00 ; Ministre Kubla, L’écho 13.9/00 ; Ministre
Dupuis, Le Soir, 13/9/00 ; Ministre Dupuis, Le Soir, 2/10/01. (volta
para o texto)
[3]
Cf.: Black Paul & Atkin J. Myron (eds), Changing the subject, innovations
in science, mathematics and technology education, OECD & Routledge, London,
1996 : “ Every country that participated in our international study is dissatisfied
with the education of its students in science, mathematics or technology ” (p.
12). (volta
para o texto)
[4]
Cf. a obra citada, mais : Black Paul & Atkin Myron J. , “ A global
Revolution in Science, Mathematics and Technology Education ”, Education Week,
1996, April 10, pp 1-8 (volta
para o texto)
[5]
Cf. em Black & al., in Changing the subject p. 35 : “ Content should be
chosen which has greater meaning for the lives of (the) students ; most often
(teachers) prefer content that relates to the real world ” (volta
para o texto)
[6] Cf.
em Black & al., in Changing the subject p.62 : “ Learning is effective only
when it starts from and builds on the ideas and perceptions that students carry
with them to their studies ”. (volta
para o texto)
[7] Se
consideramos o ditado “ Para ensinar a matemática a John, não basta conhecer a
matemática, é necessário conhecer John” e acrescentando-se “E ser capaz de
explicar por quê, para quem e em vista de quê se impõe a John esta
aprendizagem”, avalia-se a que ponto a formação de licenciados em ciências pode
ser deficiente em relação ao que se poderia esperar deles. (volta
para o texto)
[8]
Na Bélgica, chamam-se “régents” os professores do ciclo secundário
inferior(fundamental), os quais são geralmente detentores de um diploma de
ensino superior não-universitário. (volta
para o texto)
[9]
Fala-se de negociar com uma tecnologia ou com uma representação do mundo,
quando se consegue construir um compromisso, adaptando-o a seus projetos que se
adaptam a seus limites. (volta
para o texto)
[10]
Reconheçamos que, por trás destes temas pedagógicos, perfilam-se também
interesses profissionais. Se é necessário ensinar muitos resultados, pode-se
talvez legitimar a demanda de mais horas de cursos em que se deve
sobretudo ensinar um método e uma atitude (ainda que isto não seja evidente). (volta
para o texto)
[11]
Estas são associações que se desenvolveram há uns quarenta anos, visando a
promover as ciências, notadamente no contexto do Sputnik e da corrida para a
Lua. (volta
para o texto)
[12]
Cf. Alphabétisation scientifique et technique. Essai sur les finalités de
l'enseignement des sciences G. FOUREZ, en coll. V. ENGLEBERT-LECOMTE, D.
GROOTAERS, Ph. MATHY, F. TILMAN, De Boek Université, Bruxelles 219 p., 1994. (volta
para o texto)
[13]
Cf. Wolff-Michael ROTH, “ Scientific literacy as an emergent feature of
collective human praxis ” In Journal of Curriculum Studies : preprint :
http://www.educ.uvic.ca/faculty/mroth/PREPRINTS/OPED105.pdf (volta
para o texto)
[14]
$ Van Berkel, B., A conceptual structure of the chemistry curriculum.
Dissertation (en preparation).
Van Berkel, B., W. de Vos, A.H. Verdonk and A. Pilot (1999) Normal science
education and its dangers - the case of school chemistry, SC&ED (accepted
for publication). (volta
para o texto)
[15]
As ciências “desencantam” o mundo, ao separar os objetos da sua história e do
tecido relacional e afetivo que lhes dá uma alma. De maneira similar, a
burguesia comerciante considera os objetos segundo um equivalente monetário.
Sobre este assunto, ver: G. Fourez, La construction des sciences, Ed. De Boeck
Université, Bruxelles, 4e éd., 2001, ch. 6. (volta
para o texto)
[16]
Pode-se, a este respeito, analisar os significados dos discursos que julgam
não-ensináveis as competências transferíveis ou gerais como “ter o bom uso dos
especialistas”, “saber construir modelos simples”, etc. (volta
para o texto)
[17]
Mas mesmo sobre este ponto, hoje se reconhece que a experiência jamais fala
dela mesma, ela deve sempre ser interpretada, ou seja, submetida a um
tratamento teórico. (volta
para o texto)
[18]
Os biólogos e mesmo os químicos são às vezes menos conscientes que os físicos
do caráter teorizador e modelador das ciências.
(volta para o texto)
[19]
Quando os alunos não vêem que fazer ciências é teorizar, torna-se difícil, para
eles, obter uma metacognição plausível de sua prática.
(volta para o texto)
[20]
Kabir Shaikh, “Tour d’horizon mondial de l’enseignement des sciences, de la
technologie et des mathématiques” in Connexion, UNESCO, vol. XXV, n°3-4, 2000,
p. 2. (volta
para o texto)
[21]
Não se trata entretanto de convidar os alunos a continuar no mundo deles (ou
seja, nas suas representações espontâneas - ou condicionadas), mas de
fazê-los perceber que o desvio pelas representações padronizadas das ciências é
interessante. (volta
para o texto)
[22]
Cf. IBARRA Andoni & MORMANN Thomas: “ Theories as representations ”,
in: Pozman Studies in the Philosophy of the Sciences and the Humanities, 1997,
vol. 61, pp. 58-87 (volta
para o texto)
[23]
Sem esquecer que a padronização de uma representação científica faz parte ao
mesmo tempo de seu interesse/sua importância e é uma razão de impor aos alunos
certas “modelações” mais que outras. As práticas científicas não visam somente
à invenção de representações eficazes, mas também de representações bem
testadas e bem comunicáveis porque bem padronizadas. (volta
para o texto)
[24]
Nota da tradução: No original, “faire flèche de tout bois”. (volta
para o texto)
[25] Ainda que, sob este rótulo, se esconda uma
multiplicidade de bagagens intelectuais. (volta para o texto)
[26]
Sobre a interdisciplinaridade, cf. FOUREZ G., “Fondements épistémologiques pour
l’interdisciplinarité” in Lenoir Y., Rey B.& Fazenda I. éds., Les fondements
de l’interdisciplinarité dans la formation à l’enseignement, Ed. du CRP,
Sherbrooke, 2001 ; FOUREZ G., “Interdisciplinarité et îlots de rationalité” in
Revue Canadienne de l’enseignement des sciences, des mathématiques et des
technologies, vol. 1, n°3, juillet 2001 ; Maingain A., Dufour B. & Fourez
G.: Approches didactiques de l’interdisciplinarité, Ed. Deboeck Univ., Un
vol., Bruxelles, 2001 (sous presse) ; ROEGIERS, Xavier: Une pédagogie de
l'intégration, De Boeck Univ., Bruxelles, 2000, 305 pp.(volta
para o texto)