O desenvolvimento da Ciência em
Thomas Kuhn
Isabel Mª Magalhães R.L. Santos Maia
http://www.consciencia.org/contemporanea/kuhnisabel.shtml
1- Introdução
T. Kuhn constitui um marco
importante na perspectiva do desenvolvimento científico na medida em que se
opõe a uma concepção de ciência explicativa. Neste sentido, Kuhn vai tentar
desenvolver as suas teorias epistemológicas num contacto mais estreito com a
história das ciências.
Kuhn apercebe-se que, de facto, as
explicações tradicionais da ciência, o indutivismo, o falsificacionismo, não
resistem à evidência histórica.
O aspecto mais importante da sua
teoria reside na ênfase dada ao carácter revolucionário do próprio progresso
científico. Este dá-se, segundo Kuhn, mediante saltos e não numa linha
contínua. Neste sentido, a forma como Kuhn vê o progresso científico implica a
abordagem de alguns conceitos fundamentais: "paradigma", "ciência
normal", "anomalia",e "revolução".
A fase que precede a formação da
ciência é caracterizada por toda uma actividade diversa e por toda uma
desorganização que só mediante a adopção de um paradigma se estrutura. O
paradigma será assim uma estrutura mental assumida que serve para classificar o
real antes do estudo ou investigação mais profunda, o que comporta elementos de
natureza metodológico-científica, mas também metafísica, psicológica, etc. O
que Kuhn designa de ciência normal será o período em que se actua dentro de um
dado paradigma que é perfilhado por uma comunidade científica. Os cientistas
avançam, neste período, dentro dos problemas que o paradigma assumido permite
detectar. Ao fazerem-no, experimentam dificuldades ou problemas que, por vezes,
o paradigma não consegue resolver, as chamadas "anomalias". Quando
estas ultrapassam o controle, instala-se uma crise que só será resolvida pela
emergência de um novo paradigma. É chegada então a revolução científica:
muda-se a forma de olhar o real, criam-se novos paradigmas. A adopção de um
novo paradigma, a nível individual, é descrita por Kuhn como uma espécie de
"conversão" que envolve todo um possível conjunto de razões. Após a
adopção de um novo paradigma inicia-se um período de ciência normal até que uma
nova crise se instale.
Procurarei, ao longo deste texto,
explicitar estes conceitos, explorando as suas conexões. Abordarei, a título
conclusivo, as consequências da perspectiva de Kuhn para uma nova ideia de
ciência, questão esta que se me afigura fundamental e justificativa deste
despretensioso texto. Para compreender o alcance e a fecundidade da perspectiva
de Kuhn, procederei a uma breve comparação entre esta perspectiva e a
perspectiva popperiana de ciência, uma vez que esta última surge como uma tentativa
de superação do indutivismo, embora não o tenha conseguido na totalidade.
Parece-me, todavia, importante referi-la.
2- Paradigmas e Ciência Normal
Não houve nenhum período desde a
antiguidade mais remota até aos fins do século XVII em que existisse uma
opinião única, generalizada e aceite sobre a natureza da luz. Em vez disso,
havia numerosas escolas (...) competidoras e todas realçavam como observações
paradigmáticas, o conjunto particular de fenómenos ópticos que lhes podia
explicar a sua teoria,
ou seja, o período que antecede a adopção de um paradigma é um período do
género do acima descrito, caracterizado pelo desacordo constante e pela
discussão de fundamentos. Em casos como este existem quase tantas teorias como
cientistas e penso que é por aqui que poderei começar contrapondo este tipo de
períodos designados por Kuhn de "pré-ciência" a períodos de ciência
madura que, de acordo com o mesmo, são governados por um só paradigma. Mas o
que é então um paradigma? Nas próprias palavras de Kuhn um paradigma é o que
os membros de uma comunidade científica compartilham e, reciprocamente, uma
comunidade científica consiste em homens que compartilham um paradigma. E o
que compartilham esses homens? Um conjunto de suposições teóricas gerais, leis
e técnicas para a aplicação dessas leis. É então o paradigma que coordena e
dirige a actividade de grupos de cientistas que nele trabalham. Para além de
leis estabelecidas, suposições teóricas e formas de aplicar essas leis, o
paradigma inclui igualmente os instrumentos necessários para que as leis do
paradigma suportem o mundo real. Por exemplo, a aplicação do paradigma
newtoniano à astronomia, implicou a utilização de todo um conjunto de
telescópios, juntamente com técnicas que permitam corrigir os dados recolhidos
com a ajuda daqueles.
O paradigma comporta ainda, como
sumariamente referi na introdução, elementos de ordem metafísica que gerem o
próprio trabalho dentro do paradigma, e metodológico-científica. Como exemplo
de um elemento metafísico, posso referir um certo tipo de suposição que
governou o paradigma newtoniano no século passado: A totalidade do mundo
físico é explicada como um sistema mecânico operando sob a influência de várias
forças, de acordo com as leis do movimento de Newton, e como exemplo de um
instrumento metolológico-científico, uma afirmação do tipo: Faz todas as
tentativas para adequares o teu paradigma à natureza.
A ciência normal não é nem mais nem
menos do que o período em que se trabalha num determinado paradigma, adoptado
por uma comunidade científica. Kuhn retrata este período como um puzzle
simultaneamente de natureza teórica e experimental: os problemas de articulação
do paradigma são ao mesmo tempo teóricos e experimentais. Neste período
entendem-se problemas bem definidos que contêm implicitmente as suas soluções.
Avança-se nos problemas que o paradigma permite detectar e resolver.
A ciência normal significa então uma
investigação que se baseia em problemas que uma comunidade científica reconhece
em particular durante um determinado periodo de tempo como fundamento para a
sua prática posterior.
Os cientistas pressupõem, neste
sentido, que o paradigma fornece os meios para resolver os puzzles, dentro
dele, de forma que, uma falha na resolução destes puzzles é vista mais como uma
falha do cientista, do que como uma inadequação do paradigma tal como, quando
num jogo de xadrez um jogador perde, a culpa é atribuída a ele e não ao jogo de
xadrez, ou seja, o fracasso reside em falhas cometidas pelo jogador e não nas
regras de xadrez que funcionam perfeitamente.
Este período assume ainda um
carácter cumulativo uma vez que se procede à construção de instrumentos mais
potentes e eficazes, se efectuam medições mais exactas e precisas, não
procurando o cientista, a novidade; trata-se de uma espécie de "variação
em torno do mesmo", como nos deixa antever Kuhn: A característica mais
surpreendente dos problemas de investigação normal (...) é a de tão pouco
aspirarem a produzir novidade. Todavia, "tais novidades aparecem
necessariamente uma vez que se articulação teórica do paradigma aumenta,
consequentemente aumenta o conteúdo informativo da própria teoria, e é sabido
que quanto mais se diz, maior é o risco de engano. Em termos de paradigma,
quanto maior é o conteúdo informativo, maior e mais fácil é ser desmentido. É
neste contexto que se explicam as anomalias, factos que o cientista não
consegue resolver dentro do paradigma (um exemplo de uma anomalia é, por
exemplo, a observação dos satélites de Júpiter por Galileu). No entanto, Kuhn
reconhece que a existência de anomalias ou problemas é comum, ou seja, não é
pela simples existência de uma anomalia que se instala uma crise! Ver-se-á, de
seguida, quais as anomalias que poderão conduzir a uma crise.
3- Crise e revolução
Referiu-se no capítulo anterior que
durante um período de ciência normal, o cientista trabalha confiante na área
ditada pelo paradigma que lhe dá um conjunto de problemas e de métodos que ele
acredita poderem resolver os problemas. Todavia, são encontradas falhas que se
podem tornar sérias, constituindo uma crise para o paradigma que in extremis
poderá levar á rejeição deste e à sua substituição por um outro. Mas como
referi também, não é a mera existência de puzzles não resolvidos que,
necessariamente, conduz à crise pois o valor atribuído a um novo fenómeno
(...) varia de acordo com o nosso cálculo da amplitude com que o dito fenómeno
rompe com as previsões induzidas pelo paradigma e para que uma anomalia
provoque uma crise, deve ser algo mais do que uma anomalia (...) o que é que
faz com que uma anomalia mereça exame? É, pois, só sob determinadas
condições que as anomalias chegam ao ponto de destruir a confiança dos
cientistas no seu paradigma; os cientistas fazem, de facto, todas as variações
possíveis para adaptar o seu paradigma à anomalia. Esta só é tida como
verdadeiramente séria e grave se ameaça os fundamentos de um paradigma ao
resistir a todas as tentativas empreendidas pela comunidade científica para a
remover. O primeiro esforço de um cientista face a uma anomalia é dar-lhe estrutura,
aplicando com mais força ainda, as regras da ciência normal, mesmo dando-se
conta de que elas não são absolutamente correctas. Mas à medida que vão
surgindo mais e mais anomalias, instala-se a crise. E como reagem os cientistas
à crise? Perdendo a confiança no paradigma anteriormente perfilhado e esta
perda manifesta-se nas discussões filosóficas sobre fundamentos e métodos a que
recorrem os cientistas que expressam descontentamento explícito (...) tudo
isto são sintomas de uma transição de uma investigação normal para uma não
ordinária.
A seriedade de uma crise
aprofunda-se quando surge um paradigma rival que será muito diferente a até
incompatível com o anterior uma vez que, a transição de um paradigma para outro
não é um processo cumulativo, mas uma reconstrução do campo de investigação a
partir de novos fundamentos: A tradição científica normal que surge de uma
revolução científica é incompatível com as que existiam anteriormente.
Enfraquecido e minado um paradigma,
abre-se a porta à revolução: a transição para um novo paradigma é a
revolução científica.
Um grande marco de uma revolução
paradigmática é, por exemplo, a revolução galilaica do século XVII. Vê-se
facilmente como funciona um paradigma, tomando como exemplo a observação das
manchas solares feita por Galileu. Ele observa-as através do telescópio e outro
cientista não as vê nas mesmas condições. Porquê? Por que se trata de dois
paradigmas diferentes: um permite ver as manchas solares, ao passo que o outro
não. No fundo, a ciência aparece-nos como algo de conservador, na medida em que
se agarra aquilo que permite evitar o caos.
A prática científica pressupõe
sempre uma pré-compreensão do real que determina o objecto, o método e o tipo
das suas investigações. E um paradigma é, nesta medida, uma espécie de
"caleidoscópio" e quando muda, o que se altera é o jogo de espelhos-
esse é o paradigma, a nova configuração. Há momentos da história da ciência em
que se mudam esses espelhos, como é o caso da revolução galilaica e assim,
estamos perante uma outra configuração dos factos .
Galileu configura, pois, um novo
paradigma.
O período de revolução científica é,
neste sentido, um período de mudança de paradigmas e o que muda é a maneira de
olhar o mundo. Os diferentes paradigmas irão considerar diferentes tipos de
questões como legítimas ou significativas: O nascimento de uma nova teoria
rompe com a tradição da pratica científica e introduz uma nova, o que se leva a
cabo com regras diferentes e dentro de um universo de razões também diferentes
e assim envolve diferentes e incompatíveis modelos. Isto é compreensível na
medida em que ao abraçar um paradigma, o cientista adquire uma teoria, um
método e um conjunto de normas; quando muda o paradigma, necessariamente são
alterados os critérios que determinam a legitimidade quer dos problemas, quer
das próprias soluções propostas.
Mas então, como se passa de um
paradigma a outro? Como aceitam os cientistas o novo paradigma? De acordo com
Kuhn não há nenhum argumento lógico que possa demonstrar, à priori, a superioridade
de um paradigma relativamente a outro e, neste sentido, obrigue o cientista a
adoptar um e não outro. O que há (tal como adiantei na introdução) é um
conjunto de factores que se encontram envolvidos no julgamento que o cientista
faz dos méritos de uma teoria. Se um pode, eventualmente, sentir-se atraído
pela teoria copernicana em virtude da sua extrema simplicidade, um outro pode
rejeitá-la por motivos do foro religioso. Para além das razões individuais que
condicionam a adopção de um novo paradigma, há também todo o conjunto de
modelos a fixar e diferentes princípios metafísicos, que os paradigmas rivais
propõem. Enfim, há todo um conjunto de razões de tal forma inter-relacionadas
que não se pode afirmar a existência de algum argumento lógico que, por si só,
obrigue o cientista a abandonar um paradigma a favor de outro, embora Kuhn
apresente alguns critérios que , obviamente, podem ser tidos em linha de conta
para considerar um teoria melhor do que outra, entre eles: a exactitude da
predição, particularmente e predição quantitativa; o balanço entre matérias
esotéricas e as matérias ordinárias, etc.
Em suma, revolução científica
chamamos ao abandono de um paradigma e á adopção de um outro, não por um
cientista individualmente, mas por toda uma comunidade científica, sendo a
transição sucessiva de um paradigma para outro por meio de uma revolução, o
modelo ideal de desenvolvimento de uma ciência madura.
4- Conclusão
À primeira vista poderá parecer que
Kuhn se limita a dar uma explicação puramente descritiva da natureza das
ciências o que, a meu ver, não é verdade, uma vez que Kuhn estabelece as
funções da ciência normal e da revolução. Se a ciência normal tem como função
fornecer aos cientistas a oportunidade de desenvolverem detalhadamente uma teoria,
aplicando toda a sua energia e todo o seu esforço, Kuhn adianta que se
permanecesse neste período normal, a ciência não progrediria. Se a ciência
progride é porque ela contém em si os meios mediante os quais o paradigma
"racha", permitindo o salto para um outro sendo esta, justamente, a
função da revolução. O que Kuhn propõe é, precisamente, um progresso que se faz
mediante a revolução.
Posto isto, quais então as
consequências de Kuhn para uma nova ideia de ciência? Em que é que ele difere
de anteriores concepções de ciência?
Em primeiro lugar, toda esta
perspectiva desenvolvida ao longo deste texto, oferece um novo questionamento
de toda a ciência experimental. Se toda a investigação é feita com base num
paradigma e se esse paradigma contém elementos de variada natureza, não há
experiência, não há ciência, sem teoria.
Em segundo lugar, para além de
sublinhada a importância concedida à teoria, é também questionada uma concepção
de história continuista da ciência, como a entende Popper, por exemplo. Segundo
a perspectiva popperiana a história da ciência consiste numa série de
conjecturas; trata-se de formular hipóteses e em segundo lugar de as refutar. A
ciência para Popper começa com problemas referentes à explicação do mundo ou do
universo, mas para resolver estes problemas são formuladas hipóteses que
posteriormente são postas de parte. Há, portanto, um crescimento contínuo e
constante das ciências. Para Kuhn, pelo contrário, a ciência avança por
rupturas.
Esta leitura descontinuista implica
um questionamento da história cumulativa da ciência. Segundo uma linha
continuista, a ciência tem como horizonte a produção de verdades e a
apresentação de teorias explicativas da realidade. Mas se há história, como
aliar a historicidade da ciência a esse seu objectivo que é a formulação de
proposições científicas verdadeiras? Nesta perspectiva a ciência constrói-se
por acumulação, visto que cada teoria aperfeiçoa a anterior e é, justamente,
este conceito cumulativo que Kuhn questiona.
Em última análise o que é questionado
é o conceito de verdade. No falsificacionismo está implícito um pressuposto
racionalista que se poderá traduzir na preocupação da ciência em procurar a
verdade. A verdade será, portanto, a preocupação fundamental, mas Popper afirma
frequentemente ser impossível formular um critério de verdade e aqui reside uma
certa contradição, pois se por um lado a ciência caminha para a verdade, por
outro lado não há critério que permita afirmar que uma proposição é verdadeira.
Quando muito, pode-se dizer que é falsa ou que resistiu às suas falsificações e
às falsificações das anteriores teorias e, nesta medida, é superior a elas. A
verdade funcionará como uma espécie de ideal regulador. Aproximamo-nos da
verdade eliminando os erros das teorias precedentes e substituindo-as por
outras com maior grau de verosimilhança, sendo nisto que reside o progresso da
ciência, e só há progresso se se admitir uma verdade na direcção da qual se
segue. Assim, o objecto da ciência não será tanto a verdade, mas o incrementar
da verosimilhança mediante a procura de proposições aproximadamente mais
verdadeiras. A verdade é aproximativa.
Popper pretende criticar a tese
verificacionista, mas ao falar de verossimilhança não recupera aquele conceito?
A corroboração experimental não implica, ainda que ao de leve, a admissão de
argumentos de natureza indutivista? De facto, Popper mostra-se ainda herdeiro
dos pressupostos da ciência (empirismo lógico) relativamente aos quais se
pretende demarcar. Não dá conta, de facto, da evolução da ciência.
Para Kuhn a verdade de cada teoria
funciona apenas dentro de cada paradigma. Mesmo ao nível da ciência, não há uma
verdade absoluta. Kuhn põe em causa o conceito de verdade como objecto da
ciência. Podemos falar de verdade, mas apenas como sendo intra-paradigmática.
Em suma, o que Kuhn nos propõe é um
progresso que se faz mediante a revolução. Enfim, uma alternativa ao progresso
cumulativo, característico da explicação indutivista da ciência.
5-
Bibliografia