a
teoria das inteligências múltiplas e suas implicações para educação
Autora:
Maria Clara S. Salgado Gama ©
Doutora em Educação Especial pela Universidade de Colúmbia, NY
http://www.homemdemello.com.br/psicologia/intelmult.html
No início do século XX, as
autoridades francesas solicitaram a Alfredo Binet que criasse um instrumento
pelo qual se pudesse prever quais as crianças que teriam sucesso nos liceus
parisenses. O instrumento criado por Binet testava a habilidade das crianças
nas áreas verbal e lógica, já que os currículos acadêmicos dos liceus
enfatizavam, sobretudo o desenvolvimento da linguagem e da matemática. Este
instrumento deu origem ao primeiro teste de inteligência, desenvolvido por
Terman, na Universidade de Standford, na Califórnia: o Standford-Binet
Intelligence Scale.
Subseqüentes testes de inteligência
e a comunidade de psicometria tiveram enorme influência, durante este século,
sobre a idéia que se tem de inteligência, embora o próprio Binet (Binet &
Simon, 1905 Apud Kornhaber & Gardner, 1989) tenha declarado que um único
número, derivado da performance de uma criança em um teste, não poderia
retratar uma questão tão complexa quanto a inteligência humana. Neste artigo,
pretendo apresentar uma visão de inteligência que aprecia os processos mentais
e o potencial humano a partir do desempenho das pessoas em diferentes campos do
saber.
As pesquisas mais recentes em
desenvolvimento cognitivo e neuropsicologia sugerem que as habilidades
cognitivas são bem mais diferenciadas e mais espcíficas do que se acreditava
(Gardner, I985). Neurologistas têm documentado que o sistema nervoso humano não
é um órgão com propósito único nem tão pouco é infinitamente plástico. Acredita-se,
hoje, que o sistema nervoso seja altamente diferenciado e que diferentes
centros neurais processem diferentes tipos de informação ( Gardner, 1987).
Howard Gardner, psicólogo da
Universidade de Hervard, baseou-se nestas pesquisas para questionar a tradicional
visão da inteligência, uma visão que enfatiza as habilidades lingüística e
lógico-matemética. Segundo Gardner, todos os indivíduos normais são capazes de
uma atuação em pelo menos sete diferentes e, até certo ponto, independentes
áreas intelectuais. Ele sugere que não existem habilidades gerais, duvida da
possibilidade de se medir a inteligência através de testes de papel e lápis e
dá grande importância a diferentes atuações valorizadas em culturas diversas.
Finalmente, ele define inteligência como a habilidade para resolver problemas
ou criar produtos que sejam significativos em um ou mais ambientes culturais.
A teoria
A Teoria das Inteligências
Múltiplas, de Howard Gardner (1985) é uma alternativa para o conceito de
inteligência como uma capacidade inata, geral e única, que permite aos
indivíduos uma performance, maior ou menor, em qualquer área de atuação. Sua
insatisfação com a idéia de QI e com visões unitárias de inteligência, que
focalizam sobretudo as habilidades importantes para o sucesso escolar, levou
Gardner a redefinir inteligência à luz das origens biológicas da habilidade
para resolver problemas. Através da avaliação das atuações de diferentes
profissionais em diversas culturas, e do repertório de habilidades dos seres
humanos na busca de soluções, culturalmente apropriadas, para os seus
problemas, Gardner trabalhou no sentido inverso ao desenvolvimento, retroagindo
para eventualmente chegar às inteligências que deram origem a tais realizações.
Na sua pesquisa, Gardner estudou também:
( a) o desenvolvimento de diferentes
habilidades em crianças normais e crianças superdotadas; (b) adultos com lesões
cerebrais e como estes não perdem a intensidade de sua produção intelectual,
mas sim uma ou algumas habilidades, sem que outras habilidades sejam sequer
atingidas; (c ) populações ditas excepcionais, tais como idiot-savants e
autistas, e como os primeiros podem dispor de apenas uma competência, sendo
bastante incapazes nas demais funções cerebrais, enquanto as crianças autistas
apresentam ausências nas suas habilidades intelectuais; (d) como se deu o
desenvolvimento cognitivo através dos milênios.
Psicólogo construtivista muito
influenciado por Piaget, Gardner distingue-se de seu colega de Genebra na
medida em que Piaget acreditava que todos os aspectos da simbolização partem de
uma mesma função semiótica, enquanto que ele acredita que processos
psicológicos independentes são empregados quando o indivíduo lida com símbolos
lingüisticos, numéricos gestuais ou outros. Segundo Gardner uma criança pode
ter um desempenho precoce em uma área (o que Piaget chamaria de pensamento
formal) e estar na média ou mesmo abaixo da média em outra (o equivalente, por
exemplo, ao estágio sensório-motor). Gardner descreve o desenvolvimento
cognitivo como uma capacidade cada vez maior de entender e expressar
significado em vários sistemas simbólicos utilizados num contexto cultural, e
sugere que não há uma ligação necessária entre a capacidade ou estágio de
desenvolvimento em uma área de desempenho e capacidades ou estágios em outras
áreas ou domínios (Malkus e col., 1988). Num plano de análise psicológico,
afirma Gardner (1982), cada área ou domínio tem seu sistema simbólico próprio;
num plano sociológico de estudo, cada domínio se caracteriza pelo
desenvolvimento de competências valorizadas em culturas específicas.
Gardner sugere, ainda, que as
habilidades humanas não são organizadas de forma horizontal; ele propõe que se
pense nessas habilidades como organizadas verticalmente, e que, ao invés de
haver uma faculdade mental geral, como a memória, talvez existam formas
independentes de percepção, memória e aprendizado, em cada área ou domínio, com
possíveis semelhanças entre as áreas, mas não necessariamente uma relação
direta.
As inteligências múltiplas
Gardner identificou as inteligências
lingúística, lógico-matemática, espacial, musical, cinestésica, interpessoal e
intrapessoal. Postula que essas competências intelectuais são relativamente
independentes, têm sua origem e limites genéticos próprios e substratos neuroanatômicos
específicos e dispõem de processos cognitivos próprios. Segundo ele, os seres
humanos dispõem de graus variados de cada uma das inteligências e maneiras
diferentes com que elas se combinam e organizam e se utilizam dessas
capacidades intelectuais para resolver problemas e criar produtos. Gardner
ressalta que, embora estas inteligências sejam, até certo ponto, independentes
uma das outras, elas raramente funcionam isoladamente. Embora algumas ocupações
exemplifiquem uma inteligência, na maioria dos casos as ocupações ilustram bem
a necessidade de uma combinação de inteligências. Por exemplo, um cirurgião
necessita da acuidade da inteligência espacial combinada com a destreza da
cinestésica.
Inteligência lingüística - Os componentes centrais da inteligência
lingüistica são uma sensibilidade para os sons, ritmos e significados das
palavras, além de uma especial percepção das diferentes funções da linguagem. É
a habilidade para usar a linguagem para convencer, agradar, estimular ou
transmitir idéias. Gardner indica que é a habilidade exibida na sua maior
intensidade pelos poetas. Em crianças, esta habilidade se manifesta através da
capacidade para contar histórias originais ou para relatar, com precisão,
experiências vividas.
Inteligência musical - Esta inteligência se manifesta
através de uma habilidade para apreciar, compor ou reproduzir uma peça musical.
Inclui discriminação de sons, habilidade para perceber temas musicais,
sensibilidade para ritmos, texturas e timbre, e habilidade para produzir e/ou reproduzir
música. A criança pequena com habilidade musical especial percebe desde cedo
diferentes sons no seu ambiente e, freqüentemente, canta para si mesma.
Inteligência lógico-matemática - Os
componentes centrais desta inteligência são descritos por Gardner como uma
sensibilidade para padrões, ordem e sistematização. É a habilidade para
explorar relações, categorias e padrões, através da manipulação de objetos ou
símbolos, e para experimentar de forma controlada; é a habilidade para lidar
com séries de raciocínios, para reconhecer problemas e resolvê-los. É a
inteligência característica de matemáticos e cientistas Gardner, porém, explica
que, embora o talento cientifico e o talento matemático possam estar presentes
num mesmo indivíduo, os motivos que movem as ações dos cientistas e dos
matemáticos não são os mesmos. Enquanto os matemáticos desejam criar um mundo
abstrato consistente, os cientistas pretendem explicar a natureza. A criança
com especial aptidão nesta inteligência demonstra facilidade para contar e
fazer cálculos matemáticos e para criar notações práticas de seu raciocínio.
Inteligência espacial - Gardner
descreve a inteligência espacial como a capacidade para perceber o mundo visual
e espacial de forma precisa. É a habilidade para manipular formas ou objetos
mentalmente e, a partir das percepções iniciais, criar tensão, equilíbrio e
composição, numa representação visual ou espacial. É a inteligência dos
artistas plásticos, dos engenheiros e dos arquitetos. Em crianças pequenas, o
potencial especial nessa inteligência é percebido através da habilidade para
quebra-cabeças e outros jogos espaciais e a atenção a detalhes visuais.
Inteligência cinestésica - Esta
inteligência se refere à habilidade para resolver problemas ou criar produtos
através do uso de parte ou de todo o corpo. É a habilidade para usar a
coordenação grossa ou fina em esportes, artes cênicas ou plásticas no controle
dos movimentos do corpo e na manipulação de objetos com destreza. A criança
especialmente dotada na inteligência cinestésica se move com graça e expressão
a partir de estímulos musicais ou verbais demonstra uma grande habilidade
atlética ou uma coordenação fina apurada.
Inteligência interpessoal - Esta
inteligência pode ser descrita como uma habilidade pare entender e responder
adequadamente a humores, temperamentos motivações e desejos de outras pessoas.
Ela é melhor apreciada na observação de psicoterapeutas, professores, políticos
e vendedores bem sucedidos. Na sua forma mais primitiva, a inteligência
interpessoal se manifesta em crianças pequenas como a habilidade para
distinguir pessoas, e na sua forma mais avançada, como a habilidade para
perceber intenções e desejos de outras pessoas e para reagir apropriadamente a
partir dessa percepção. Crianças especialmente dotadas demonstram muito cedo
uma habilidade para liderar outras crianças, uma vez que são extremamente
sensíveis às necessidades e sentimentos de outros.
Inteligência intrapessoal - Esta
inteligência é o correlativo interno da inteligência interpessoal, isto é, a
habilidade para ter acesso aos próprios sentimentos, sonhos e idéias, para
discriminá-los e lançar mão deles na solução de problemas pessoais. É o
reconhecimento de habilidades, necessidades, desejos e inteligências próprios,
a capacidade para formular uma imagem precisa de si próprio e a habilidade para
usar essa imagem para funcionar de forma efetiva. Como esta inteligência é a
mais pessoal de todas, ela só é observável através dos sistemas simbólicos das
outras inteligências, ou seja, através de manifestações lingüisticas, musicais
ou cinestésicas.
O desenvolvimento das inteligências
Na sua teoria, Gardner propõe que
todos os indivíduos, em princípio, têm a habilidade de questionar e procurar
respostas usando todas as inteligências. Todos os indivíduos possuem, como
parte de sua bagagem genética, certas habilidades básicas em todas as
inteligências. A linha de desenvolvimento de cada inteligência, no entanto,
será determinada tanto por fatores genéticos e neurobiológicos quanto por
condições ambientais. Ele propõe, ainda, que cada uma destas inteligências tem
sua forma própria de pensamento, ou de processamento de informações, além de
seu sitema simbólico. Estes sistemas simbólicos estabelecem o contato entre os
aspectos básicos da cognição e a variedade de papéis e funções culturais.
A noção de cultura é básica para a
Teoria das Inteligências Múltiplas. Com a sua definição de inteligência como a
habilidade para resolver problemas ou criar produtos que são significativos em
um ou mais ambientes culturais, Gardner sugere que alguns talentos só se
desenvolvem porque são valorizados pelo ambiente. Ele afirma que cada cultura
valoriza certos talentos, que devem ser dominados por uma quantidade de
indivíduos e, depois, passados para a geração seguinte.
Segundo Gardner, cada domínio, ou
inteligência, pode ser visto em termos de uma seqüência de estágios: enquanto
todos os indivíduos normais possuem os estágios mais básicos em todas as
inteligências, os estágios mais sofisticados dependem de maior trabalho ou aprendizado.
A seqüência de estágios se inicia
com o que Gardner chama de habilidade de padrão cru. O aparecimento da
competência simbólica é visto em bebês quando eles começam a perceber o mundo
ao seu redor. Nesta fase, os bebês apresentam capacidade de processar
diferentes informações. Eles já possuem, no entanto, o potencial para
desenvolver sistemas de símbolos, ou simbólicos.
O segundo estágio, de simbolizações
básicas, ocorre aproximadamente dos dois aos cinco anos de idade. Neste estágio
as inteligências se revelam através dos sistemas simbólicos. Aqui, a criança
demonstra sua habilidade em cada inteligência através da compreensão e uso de
símbolos: a música através de sons, a linguagem através de conversas ou
histórias, a inteligência espacial através de desenhos etc.
No estágio seguinte, a criança,
depois de ter adquirido alguma competência no uso das simbolizacões básicas,
prossegue para adquirir níveis mais altos de destreza em domínios valorizados
em sua cultura. À medida que as crianças progridem na sua compreensão dos
sistemas simbólicos, elas aprendem os sistemas que Gardner chama de sistemas de
segunda ordem, ou seja, a grafia dos sistemas (a escrita, os símbolos
matemáticos, a música escrita etc.). Nesta fase, os vários aspectos da cultura
têm impacto considerável sobre o desenvolvimento da criança, uma vez que ela
aprimorará os sistemas simbólicos que demonstrem ter maior eficácia no
desempenho de atividades valorizadas pelo grupo cultural. Assim, uma cultura
que valoriza a música terá um maior número de pessoas que atingirão uma
produção musical de alto nível.
Finalmente, durante a adolescência e
a idade adulta, as inteligências se revelam através de ocupações vocacionais ou
não-vocacionais. Nesta fase, o indivíduo adota um campo específico e focalizado,
e se realiza em papéis que são significativos em sua cultura.
Teoria das inteligências múltiplas e
a educação
As implicações da teoria de Gardner
para a educação são claras quando se analisa a importância dada às diversas
formas de pensamento, aos estágios de desenvolvimento das várias inteligências
e à relação existente entre estes estágios, a aquisição de conhecimento e a
cultura.
A teoria de Gardner apresenta
alternativas para algumas práticas educacionais atuais, oferecendo uma base
para:
( a) o desenvolvimento de avaliações
que sejam adequadas às diversas habilidades humanas (Gardner & Hatch, 1989;
Blythe Gardner, 1 990) (b) uma educação centrada na criança c com currículos
específicos para cada área do saber (Konhaber & Gardner, 1989); Blythe
& Gardner, 1390) (c) um ambiente educacional mais amplo e variado, e que
dependa menos do desenvolvimento exclusivo da linguagem e da lógica (Walters
& Gardner, 1985; Blythe & Gardner, 1990)
Quanto à avaliação, Gardner faz uma
distinção entre avaliação e testagem. A avaliação, segundo ele, favorece
métodos de levantamento de informações durante atividades do dia-a-dia,
enquanto que testagens geralmente acontecem fora do ambiente conhecido do
indivíduo sendo testado. Segundo Gardner, é importante que se tire o maior
proveito das habilidades individuais, auxiliando os estudantes a desenvolver
suas capacidades intelectuais, e, para tanto, ao invés de usar a avaliação
apenas como uma maneira de classificar, aprovar ou reprovar os alunos, esta
deve ser usada para informar o aluno sobre a sua capacidade e informar o
professor sobre o quanto está sendo aprendido.
Gardner sugere que a avaliação deve
fazer jus à inteligência, isto é, deve dar crédito ao conteúdo da inteligência
em teste. Se cada inteligência tem um certo número de processos específicos,
esses processos têm que ser medidos com instrumento que permitam ver a
inteligência em questão em funcionamento. Para Gardner, a avaliação deve ser
ainda ecologicamente válida, isto é, ela deve ser feita em ambientes conhecidos
e deve utilizar materiais conhecidos das crianças sendo avaliadas. Este autor
também enfatiza a necessidade de avaliar as diferentes inteligências em termos
de suas manifestações culturais e ocupações adultas específicas. Assim, a
habilidade verbal, mesmo na pré-escola, ao invés de ser medida através de
testes de vocabulário, definições ou semelhanças, deve ser avaliada em
manifestações tais como a habilidade para contar histórias ou relatar
acontecimentos. Ao invés de tentar avaliar a habilidade espacial isoladamente,
deve-se observar as crianças durante uma atividade de desenho ou enquanto
montam ou desmontam objetos. Finalmente, ele propõe a avaliação, ao invés de
ser um produto do processo educativo, seja parte do processo educativo, e do
currículo, informando a todo momento de que maneira o currículo deve se
desenvolver.
No que se refere à educação centrada
na criança, Gardner levanta dois pontos importantes que sugerem a necessidade
da individualização. O primeiro diz respeito ao fato de que, se os indivíduos
têm perfis cognitivos tão diferentes uns dos outros, as escolas deveriam, ao
invés de oferecer uma educação padronizada, tentar garantir que cada um
recebesse a educação que favorecesse o seu potencial individual. O segundo
ponto levantado por Gardner é igualmente importante: enquanto na Idade Média um
indivíduo podia pretender tomar posse de todo o saber universal, hoje em dia
essa tarefa é totalmente impossível, sendo mesmo bastante difícil o domínio de
um só campo do saber.
Assim, se há a necessidade de se
limitar a ênfase e a variedade de conteúdos, que essa limitação seja da escolha
de cada um, favorecendo o perfil intelectual individual.
Quanto ao ambiente educacional,
Gardner chama a atenção pare o fato de que, embora as escolas declarem que
preparam seus alunos pare a vida, a vida certamente não se limita apenas a
raciocínios verbais e lógicos. Ele propõe que as escolas favoreçam o
conhecimento de diversas disciplinas básicas; que encoragem seus alunos a
utilizar esse conhecimento para resolver problemas e efetuar tarefas que
estejam relacionadas com a vida na comunidade a que pertencem; e que favoreçam
o desenvolvimento de combinações intelectuais individuais, a partir da
avaliação regular do potencial de cada um.
Referências
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© 1998 Trait Tecnologia Ltda.