Competências
e Habilidades Cognitivas:
Diferentes Definições dos Mesmos Construtos1
Ricardo Primi2,
Acácia A. Angeli dos Santos, Claudette Medeiros Vendramini, Fernanda Taxa,
Franz August Muller, Maria de Fátima Lukjanenko e Isabel Silva Sampaio
Universidade São Francisco
Psic.: Teor. e
Pesq. vol.17 no.2 Brasília May/Aug. 2001
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722001000200007
Recentemente,
os programas de avaliação implementados pelo governo brasileiro, tais como o
Sistema de Avaliação do Ensino Básico (SAEB), o Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM) e o Exame Nacional de Cursos (ENC, Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais [INEP], 1997, 1998a, 1998b e 1999), têm chamado a
atenção para uma dimensão humana com uma longa tradição de pesquisa na
Psicologia: as habilidades cognitivas (Ackerman, Kyllonen & Roberts, 1999;
Almeida, 1988; Flanagan, Genshaft & Harrison, 1997; Hunt, 1996; 1999;
Sternberg, 1981).
Pode-se
observar que, no trabalho das comissões compostas para elaboração dessas
provas, os especialistas definem um conjunto de habilidades consideradas
essenciais e, a partir delas, constróem os instrumentos de avaliação. Um fato
que geralmente ocorre a partir de implementação de sistemas de avaliação
nacionais, como esses, é que as instituições educacionais passam a orientar o
desenvolvimento das habilidades e competências consideradas para a avaliação.
Portanto, sua definição é de fundamental importância, considerando o impacto
que podem produzir nos projetos pedagógicos das universidades.
O
objetivo deste artigo é examinar as definições de competências e habilidades
propostas pelo ENEM (INEP, 1999) à luz de concepções recentes, resultantes dos
estudos sobre a inteligência, principalmente os das abordagens psicométrica e
do processamento humano de informação. Será apresentada uma síntese das
definições de habilidades e competências propostas pelo ENEM; em seguida, a dos
modelos mais recentes da inteligência e, finalmente, serão examinadas as
semelhanças e diferenças entre ambas.
Competências e Habilidades
no ENEM
O
ENEM estrutura-se a partir de uma matriz de competências e habilidades que
fundamenta a construção dos itens e informa como os autores entendem a
inteligência e quais, entre as suas dimensões, devem ser privilegiadas pelo
Ensino Médio. Segundo os autores, ela corresponde às "possibilidades
totais da cognição humana na fase de desenvolvimento próprio aos participantes
do ENEM" (INEP, 1999, p. 9). As definições gerais de competências e
habilidades são:
Competências são as modalidades estruturais da inteligência,
ou melhor, ações e operações que utilizamos para estabelecer relações com e
entre objetos, situações, fenômenos e pessoas que desejamos conhecer. As
habilidades decorrem das competências adquiridas e referem-se ao plano imediato
do 'saber fazer'. Por meio das ações e operações, as habilidades aperfeiçoam-se
e articulam-se, possibilitando nova reorganização das competências (INEP, 1999, p.7).
São
propostas cinco competências gerais, descritas na Tabela 1, referidas pelos nomes: dominar
linguagens, compreender fenômenos, enfrentar situações-problema, construir
argumentações e elaborar propostas. Em um nível mais específico, são definidas
21 habilidades3, que na Tabela 1 são indicadas pelos seus números,
cuja especificidade refere-se à delimitação de conteúdos, tais como, utilização
de recursos naturais - conhecimento associado principalmente às ciências
físicas e biológicas, (Habilidades 7, 8, 9 e 17), conhecimento dos processos
vitais de um ponto de vista sistêmico (Habilidades 10, 11, 12, 13 e 16),
conceitos matemáticos e estatísticos (Habilidades 14 e 15), processos sociais
econômicos histórico-geográficos (Habilidades 18, 20 e 21) entre outros
(Menezes, Gualtieri, Guimarães, Lisboa & Kawamura, 1999).
As
21 habilidades orientam o trabalho de especialistas que constróem um banco de
itens, posteriormente analisados quanto à adequação aos propósitos da matriz de
competências e de orientações gerais do ENEM (Fini, Charnet, Talim &
Moraes, 1999) e quanto à adequação do ponto de vista psicométrico, necessitando
para isso de uma pré testagem, para que sejam estabelecidos os níveis de
dificuldade, de discriminação, e a possibilidade de acertos ao acaso,
utilizando-se os métodos de análise da Teoria de Resposta ao Item (Hambleton
& Swaminatham,1985). A partir dessas análises selecionam-se três itens para
cada habilidade, gerando-se um instrumento com 63 itens. Na prova de 1999, por
exemplo, os itens finais foram selecionados de um conjunto de aproximadamente
500 itens, levando-se em consideração, simultaneamente, sua adequação ao
conteúdo da matriz de competências e habilidades e sua qualidade psicométrica.
Algumas características gerais a distinguem das provas tradicionalmente usadas
em vestibulares.
Um
primeiro aspecto refere-se à mudança de ênfase de avaliação de conteúdos
memorizados para a avaliação de processos gerais de raciocínio. Como afirma
Macedo (1999):
Até há pouco tempo, a grande questão escolar era a
aprendizagem ¾ exclusiva ou preferencial ¾ de conceitos. Estávamos dominados
pela visão de que conhecer é acumular conceitos; ser inteligente implicava
articular logicamente grandes idéias, estar informado sobre grandes
conhecimentos ... Este tipo de aula, insisto, continua tendo lugar, mas cada
vez mais torna-se necessário também o domínio de um conteúdo chamado
'procedimental', ou seja da ordem do saber como fazer. Vivemos em uma sociedade
cada vez mais tecnológica, em que o problema nem sempre está na falta de informações,
pois o computador tem cada vez mais o poder de processá-las, guardá-las ou
atualizá-las. A questão está em encontrar, interpretar essas informações, na
busca de solução de nossos problemas (p.8).
Tal
ênfase está refletida numa importante característica dos itens do ENEM: o
fornecimento, nas questões, da maioria das informações necessárias à resolução
do problema proposto. Uma questão tradicional centrada na memória requer, para
resolvê-la, que o aluno aplique conhecimentos e procedimentos previamente
adquiridos. Ele só conseguirá responder se tiver aprendido e conseguir
lembrá-los no momento da avaliação (fórmulas, definições, fatos, etc.). Por
outro lado, uma questão centrada mais no raciocínio, requer a interpretação e
relacionamento das informações disponíveis nas questões. A resposta do aluno a
uma questão deste tipo depende menos da recordação de conhecimentos prévios e
mais da recombinação de conhecimentos já existentes de maneira nova. Com isso
não queremos dizer que as provas prescindam dos conhecimentos adquiridos no
passado. Eles sempre terão uma influência no processo de resolução, o que
queremos enfatizar é que, em comparação com uma prova tradicional, a
importância desse conhecimento é menor no ENEM.
Uma
segunda característica dos itens do ENEM refere-se à utilização de
situações-problema contextuadas (Macedo, 1999; Machado, 1999). Por exemplo, nas
provas tradicionais de avaliação do conhecimento pode-se fazer uma questão
envolvendo conhecimentos de química perguntando-se simplesmente se o aluno
conhece como os indicadores base reagem em soluções aquosas com diferentes pHs.
No ENEM, por outro lado, tal conhecimento é apresentado em um contexto em que é
necessário tomar uma decisão se houve falsificação de água mineral (Questão 6,
prova branca, ENEM 1999). Portanto, o conhecimento deve ser usado como
instrumento para a resolução de um problema da experiência cotidiana.
Uma
terceira característica importante do ENEM refere-se à interdisciplinaridade
das questões (Machado, 1999). Na maioria delas, os autores procuraram incluir
conhecimentos de mais de uma área. Essa inter-relação pode ser percebida na
matriz de habilidades. Nela, não aparece claramente a distinção formulada entre
as áreas de conhecimento, como habitualmente é visto nas provas de processos
seletivos; em vez disso vê-se uma combinação de áreas (por exemplo, as
Habilidades 7, 8, 9 e 17, envolvendo conhecimentos de Física, Biologia,
Economia, Geografia, História e Ética; Menezes e cols., 1999).
A
nosso ver são estas três importantes características que distinguem o ENEM e o
tornam superior às provas habitualmente usadas nos vestibulares até então.
Competências e Habilidades
na
Psicometria e na Psicologia Cognitiva
Os
modelos explicativos da inteligência têm sido classificados em três grandes
correntes, a psicométrica (ou fatorial), a desenvolvimentalista, e a da
abordagem do processamento humano de informação (Almeida, 1988, 1994;
Sternberg, 1977, 1979, 1980, 1981, 1983, 1986). A psicométrica concentra-se em
definir as estruturas da inteligência e sua organização, o que a torna
vulnerável à crítica de que só investiga o produto (diferenças individuais nos
testes de inteligência) e não o processo cognitivo que leva ao produto. A
desenvolvimentalista, baseada na ótica de Piaget e de Vigotsky, procura definir
as estruturas da inteligência e sua dinâmica ao longo do desenvolvimento,
trazendo avanços significativos ao procurar descrever o processamento cognitivo
e relacioná-lo aos diferentes estágios de desenvolvimento. Mas, a mais marcante
reação à abordagem psicométrica foi a do processamento da informação (Hunt,
1980; Newell & Simon, 1972; Sternberg, 1977), que a partir da década de 60,
deu origem a um grande volume de estudos investigando detalhadamente os
processos cognitivos envolvidos na resolução dos testes tradicionais usados
pela psicometria (Goldman & Pellegrino, 1984; Pellegrino & Glaser,
1979; Pellegrino & Lyon, 1979; Primi, 1995). Tal abordagem vem gradualmente
se integrando aos estudos da neurologia dando origem à neurociência cognitiva
(Hunt, 1999).
O
ENEM fundamenta-se claramente nos pressupostos da corrente desenvolvimentalista
de Piaget, a partir, portanto, de uma corrente européia de pensamento sobre a
inteligência (Macedo, 1999; Machado, 1999; Perrenoud, 1997).
Neste
artigo procuraremos traçar as semelhanças e diferenças dos conceitos de
competências e habilidades do ENEM com as abordagens psicométrica e do
processamento de informação, as quais representam uma corrente prioritariamente
norte-americana. Esta distinção é importante pois, embora tratem do mesmo
fenômeno, as duas correntes adotam terminologias diferentes. Em seguida,
apresentaremos uma síntese de alguns trabalhos importantes da área,
considerados representativos dos modelos atuais que procuram definir a inteligência
humana para posteriormente discutirmos as semelhanças e diferenças entre estes
modelos e as concepções de inteligência adotadas no ENEM.
A Teoria dos Três Estratos
Ao
se tratar da visão psicométrica da inteligência há de se considerar que
provavelmente a maioria destes estudos baseou-se na análise fatorial, um método
de análise de estruturas de covariância. Como escreve Carroll (1993):
a idéia básica, embora algo simplificada, é que quando se
encontram duas variáveis, representando diferenças entre indivíduos,
substancialmente correlacionadas, há a possibilidade de que uma única
habilidade cognitiva ou um conjunto unitário de habilidades cognitivas esteja
subjacente a estas variáveis, no entanto quando duas variáveis não estão
correlacionadas é provável que duas habilidades estejam subjacentes a elas (p. 5).
A
grande maioria dos estudos psicométricos da inteligência, nas primeiras sete
décadas do século XX, aplicava baterias de testes e empregava a análise
fatorial buscando descobrir como estes testes se correlacionavam e definia, a
partir dos agrupamentos formados, as estruturas da inteligência (fatores,
habilidades, aptidões).
O
principal ponto de controvérsia e tensão na abordagem psicométrica refere-se às
discussões entre os modelos que interpretam as correlações como indicadoras da
existência de uma única habilidade geral (fator g, Spearman, 1927) e os modelos
que explicam as correlações pela existência de várias habilidades (aptidões
primárias, Thurstone, 1938; Guilford, 1967; Horn, 1991; Horn & Noll, 1997).
Até há pouco tempo existia a impressão de que a psicometria ainda não tinha
produzido um modelo para inteligência humana de relativo consenso entre os
psicólogos. Só depois da década de 90, um modelo hierárquico chamado Teoria de
Três Estratos de Carroll (1993) passou a ser considerado relativamente
consensual dentro da psicometria (Flanagan & McGrew, 1997; Marañon &
Pueyo, 1999; McGrew, 1998).
Carroll
(1993) desenvolveu uma meta análise de quase todos os principais estudos
fatoriais sobre a inteligência publicados de 1920 até 1980. Foram reunidos 1500
artigos, a partir dos quais 450 matrizes de correlações foram selecionadas e
reanalisadas utilizando-se procedimentos metodológicos mais adequados de
análise fatorial (análise fatorial hierárquica, Schmid & Leiman, 1957).
Este estudo resultou no modelo hierárquico de três estratos resumido na Tabela 2, que representa os níveis de
generalidade das habilidades. Os fatores do primeiro estrato são mais
específicos e geralmente associados às tarefas existentes nos testes de
inteligência, que se organizam em sete fatores de segunda ordem, mais
abrangentes (broad factors). Por sua vez, estes fatores de segunda ordem
se relacionam entre si dando origem ao Estrato III próximo ao que Spearman
(1927) chamou de inteligência geral.
Na Tabela 2 apresentamos cada estrato em uma
coluna. Na terceira coluna, apresentamos exemplos de fatores primários de cada
fator abrangente, que foram escolhidos por serem os que apresentam maior
associação com os fatores abrangentes. Na segunda coluna, apresentamos um
resumo dos significados dos fatores abrangentes, sendo que a ordem em que
aparecem indica a associação com o fator geral. Assim, verifica-se que a
inteligência fluida é a mais próxima do fator g e a velocidade de processamento
cognitivo, a mais distante. Como afirma Carroll (1993): "há evidências
abundantes de um fator geral de inteligência que domina os fatores ou variáveis
que enfatizam um nível de complexidade elevada possível de ser dominado em
tarefas de indução, raciocínio, visualização e compreensão lingüística"
(p. 624).
Como
pode ser observado, Carroll (1993) chamou os fatores de habilidades cognitivas
(abilities). Portanto, o significado atribuído ao termo
"habilidade" difere substancialmente do significado que no ENEM se
atribui às habilidades. O significado que o autor atribui às habilidades
aproxima-se mais do conceito de "competências" adotado no ENEM,
embora o número e a natureza destas estruturas sejam diferentes nos dois
modelos (Macedo, 1999; Perrenoud, 1997). No entanto, antes de estabelecermos
tais relações é pertinente uma discussão de como estes conceitos têm sido
definidos pela Psicologia, particularmente pela escola norte-americana.
Carroll
(1993) considerou o termo "habilidade" de maneira neutra e geral
referindo-se às "variações individuais nos potenciais para realização em
uma classe definida de tarefas" (p. 16). As sete habilidades abrangentes
definem, mais precisamente, os tipos de tarefas para as quais as pessoas
revelam possuir potencial diferenciado. Distingue, ainda, o conceito de
habilidade do conceito de aptidão afirmando que: "à medida em que as
habilidades cognitivas são relativamente estáveis e relativamente resistentes
às tentativas de mudança por meio de experiências educacionais ou de
treinamento, e ao mesmo tempo, são preditoras de sucessos futuros, elas são
muitas vezes consideradas aptidões" (Carroll, 1993; p. 16). Portanto, a
definição de habilidade cognitiva não necessariamente compartilha a noção de
estabilidade temporal, e portanto, de influência genética implícita no conceito
de aptidão.4
Mayer
e Salovey (1998) fazem uma distinção importante entre habilidade (referindo-as
como aptidões) e competência. Os autores argumentam que habilidade representa o
potencial que se expressa, concretamente, em realizações ou desempenhos,
envolvendo a apresentação de respostas corretas para problemas e conhecimento
de determinado conteúdo etc. A competência, nesta concepção, indicaria um nível
padronizado de realização, o que implicaria em dizer que a realização atingiu
um determinado nível. A nosso ver, esta distinção é melhor formulada, mais
oportuna e abrangente, pois relaciona os conceitos: habilidade, conteúdo e
nível de realização. A habilidade, no sentido utilizado por Carroll (1993),
pressupõe a idéia de potencial de realização, ou seja, a existência de uma
relativa facilidade em lidar com informações e com problemas de uma determinada
classe ou conteúdo. O investimento deste potencial em experiências de
aprendizagem pode conduzir à maestria, que envolve um conhecimento organizado
sobre um determinado tema. A idéia de maestria implica que a realização atingiu
um determinado nível a partir do qual se diz que uma competência foi adquirida.
Dessa
forma, é possível pensar que a habilidade não necessariamente implica em
competência. A habilidade indica facilidade em lidar com um tipo de informação
e para que se transforme em competência será necessário investimento em
experiências de aprendizagem. No entanto, se não houver investimento, não
haverá competência, mesmo que a pessoa tenha habilidade em determinada área.
Considerando o mesmo montante de experiência, com a mesma qualidade, duas
pessoas com habilidades diferentes diferirão na facilidade com que irão
adquirir a maestria, ou que se tornarão competentes em determinado tema. Dentro
deste enfoque, existem pelo menos três fatores associados ao desenvolvimento de
competência: habilidade, montante de investimento e qualidade das experiências
de aprendizagem.
O Modelo RADEX
Um
segundo modelo explicativo da inteligência, importante de ser considerado,
pois, como afirma Sternberg (1981), representa o último estágio evolucionário
das teorias fatoriais, é o modelo RADEX (sigla criada a partir de Radial
Expansion of Complexity). Este modelo foi criado por Guttman (1954) e
designa um método diferenciado baseado na análise multidimensional para a
investigação da estrutura de organização das habilidades (Kruskal, 1964). Na
década de 80, Snow, Kyllonen e Marshalek (1984), da Universidade de Stanford,
aplicaram este método na reanálise de estudos clássicos da inteligência,
buscando construir um mapa representando a organização das habilidades e suas
relações com a aprendizagem. Neste estudo os autores compararam o RADEX com os
modelos hierárquicos da inteligência (a teoria dos três estratos é a versão
mais atualizada deles) e concluíram que eles se complementavam e que a
representação multidimensional revelava novos aspectos importantes, permitindo
integrar informações sobre a estrutura da inteligência (abordagem psicométrica)
com informações sobre o processamento da informação.
Snow
e cols. (1984) concebem o sistema cognitivo humano como um banco de estruturas
organizadas de conhecimento e de processamento das informações, também chamado
de programas de performance. Referem-se às informações contidas nesse banco
como componentes de resposta, que não precisam ser, necessariamente, unidades
simples (vinculadas a um conteúdo único), mas também, e talvez
prioritariamente, cadeias organizadas, incluindo unidades mais complexas (que
combinam conteúdos e processos cognitivos). Para eles uma determinada
situação-problema constitui-se numa condição que requer que determinados
componentes sejam aplicados, podendo resultar em uma resposta externa e/ou uma
mudança no sistema cognitivo interno. A resolução de um problema implica na
aplicação (escolha) de conjuntos de componentes específicos, que devem ser
arranjados ou organizados (assembly of components) estrategicamente.
Assim, os problemas se distinguem em função dos componentes, do arranjo entre
eles e das adaptações necessárias destes arranjos à medida em que a pessoa procede
nos passos da resolução. Do mesmo modo, as pessoas diferem entre si, em função
de quais componentes, arranjos e adaptações podem produzir para resolver um
determinado problema. Quando o desempenho em duas tarefas está correlacionado,
pode-se inferir que estas tarefas demandam amostras de componentes, arranjos e
adaptações semelhantes.
Marshalek, Lohman e Snow (1983) e Snow e cols. (1984), seguindo o procedimento de Guttman (1954),
analisaram as intercorrelações entre testes psicométricos por uma análise
multidimensional, na qual os testes foram representados como pontos em um
espaço bidimensional. A localização relativa dos pontos está associada às
correlações entre eles, isto é, pontos de testes altamente correlacionados
tendem a aparecer agrupados no espaço. Ao contrário, pontos de testes não
correlacionados tendem a aparecer separados. A análise do espaço resultante
indicou a existência de dois padrões importantes: (a) testes com mesmo conteúdo
se agrupam numa reta, ordenando-se dos mais simples para os mais complexos.
Retas formadas por conteúdos distintos convergem para um ponto central,
representando uma maior complexidade; (b) testes com mesmo nível de
complexidade se agrupam eqüidistantes do centro, formando um círculo, diferindo
no conteúdo. Guttman (1954) chamou tais padrões, respectivamente, de simplex
e circumplex e a organização simultânea destes padrões de radex.
A Figura 1
apresenta uma configuração radex dos subtestes do WISC (Escala de Inteligência
Wechsler para Crianças [WISC], Wechsler, 1964) e as Matrizes Progressivas de
Raven (J. Raven, J. C. Raven & Court, 1998), cuja figura foi criada a
partir das discussões de Snow e cols.
O
plano é dividido em três facetas, visual-espacial, quantitativo-numérico e
verbal; representando a dimensão conteúdo (circumplex). Além disso, as
distâncias periferia-centro indicam a dimensão da complexidade (simplex).
É importante frisar algumas características a respeito deste gráfico.
Geometricamente,
sabemos que o centro da circunferência é o ponto que possui uma distância média
menor de todos os outros, portanto, os testes que aparecem perto do centro são
os que apresentam maior correlação com todos os outros. Inversamente, testes
que aparecem na periferia tendem a exibir menor correlação com os outros. Como
pode ser observado, esta configuração confirma a relação encontrada por Carroll
(1993), na qual os fatores abrangentes das inteligências fluida, cristalizada e
percepção visual são os que mais se correlacionam com o fator g (centro da
circunferência).
Os
testes que aparecem no centro da circunferência incluem problemas de
complexidade maior do que os testes que aparecem na periferia e, geralmente,
são testes que envolvem problemas novos de inferência de relações. A análise
comparativa dos processos cognitivos envolvidos na resolução destes testes, em
relação aos da periferia, indica que eles requerem processos mais gerais de
raciocínio. Estes processos incluem funções executivas de arranjo de
componentes de resposta em estratégias de solução de problema, isto é, a
reorganização de esquemas prévios em novas estratégias ou programas de
performance para a resolução do problema. Envolve também o controle do
processamento (metacognição) incluindo o monitoramento e a adaptação flexível
desses programas a medida que o problema é resolvido (Bethell-Fox, Lohman &
Snow,1984). Ao contrário, os testes que se localizam na periferia são
resolvidos por programas de performance mais automáticos que não requerem um
processo de controle e adaptação tão atento.
Estes
estudos ressaltam a importância da distinção entre duas habilidades com longa
tradição na psicometria, as inteligências fluida e cristalizada. A este
respeito, Snow e cols. (1984) afirmam:
O sistema cognitivo humano deve de alguma maneira se engajar
em adquirir, reter e reutilizar conceitos e procedimentos que irão ajudá-lo em
novas situações-problema e de aprendizagem. Mas o sistema deve também se
engajar em adaptar estes conceitos cristalizados previamente e organizar novos
conceitos porque as novas tarefas a serem enfrentadas diferem apreciavelmente
daquelas experienciadas no passado (p. 98).
Com
relação ao conceito de habilidade a concepção deste grupo de pesquisadores
difere também da de Carroll (1993), tendo em vista que eles têm utilizado o
termo aptidão, sem se referir ao problema de estabilidade ou não do construto.
Snow (1992) define aptidão como uma predisposição das pessoas em emitir
respostas diferenciais à determinada situação ou classe de situações,
significando um estado inicial que irá influenciar o desenvolvimento posterior,
dadas determinadas condições. A idéia principal destes autores, que culminou na
denominação Aptitude-Treatment-Interaction (ATI), é a de que uma aptidão
sempre interage com uma situação, por exemplo, uma alta capacidade de
inteligência fluida significa uma pré-disposição de bom desempenho em situações
relativamente incompletas, pouco estruturadas, nas quais a pessoa poderá ter um
papel mais ativo e independente na organização das informações, que não
necessariamente significará a mesma prédisposição em situações mais
estruturadas e muito dependentes da aplicação de conhecimentos prévios (Snow,
1989). Portanto, as pessoas possuem aptidões ou habilidades, como referidas
neste texto, para se desempenhar em determinadas situações específicas.
Competências e Habilidades:
Uma Síntese
Resumindo,
nas abordagens da inteligência apresentadas anteriormente, duas estruturas são
tratadas como fundamentais: a inteligência cristalizada (que prioriza o
conhecimento) e inteligência fluida (que prioriza o raciocínio). A primeira
refere-se à extensão e profundidade das informações adquiridas via escolarização,
que geralmente são usadas na resolução de problemas semelhantes aos que se
aprendeu no passado, ou ao "estoque" acumulado de conhecimentos, isto
é, esquemas organizados de informações sobre áreas específicas do conhecimento.
A segunda refere-se à capacidade de processamento cognitivo, isto é, à
capacidade geral de processar informações (por exemplo, relacionar idéias
complexas, formar conceitos abstratos, derivar implicações lógicas a partir de
regras gerais) ou às operações mentais realizadas quando se resolvem problemas
relativamente novos, para os quais existem poucos conhecimentos previamente
memorizados. Esta capacidade implica na criação de estratégias a partir da
organização das informações disponíveis na situação e da reorganização de esquemas
disponíveis em nosso estoque de conhecimentos (Ackerman, 1996; Ackerman &
Heggestad, 1997; Ackerman, Kyllonen & Roberts, 1999).
Na
definição de competência de Perrenoud (1997), um dos grandes inspiradores dos
criadores do ENEM, observa-se esta distinção embora o autor não utilize a mesma
nomenclatura e nem se baseie nas referências aqui apresentadas. Ele considera
que os dois aspectos da competência são: o conhecimento e a capacidade de
mobilização do conhecimento. Competência significa, simultaneamente, a erudição
e a capacidade de mobilização do conhecimento frente à uma situação problema.
Como afirma,
um especialista é competente porque simultaneamente: (a)
domina, com muita rapidez e segurança, as situações mais comuns, por ter à sua
disposição esquemas complexos que podem entrar imediata e automaticamente em
ação, sem vacilação ou reflexão real; (b) é capaz de, com um esforço razoável
de reflexão, coordenar e diferenciar rapidamente seus esquemas de ação e seus
conhecimentos para enfrentar situações inéditas (p. 27).
Tal
distinção assemelha-se exatamente aos conceitos de inteligência cristalizada e
fluida respectivamente. Como sabemos, grande parte dos processos seletivos no
Brasil têm tradicionalmente privilegiado a noção de inteligência como capacidade
de conhecimento (inteligência cristalizada). Nos Estados Unidos ocorre o
contrário, o Scholastic Assessment Test (SAT I) enfatiza mais a
capacidade de raciocínio utilizando sub-testes de raciocínio verbal (analogias,
completar sentenças e leitura crítica) e raciocínio matemático (problemas de
aritmética, álgebra, geometria e raciocínio lógico). Um dos propósitos deste
instrumento, construído na década de 40, foi justamente a avaliação de
habilidades associadas ao desempenho escolar e não a avaliação da realização
escolar (Wainer, 1990).
Ao
que parece o ENEM situa-se em algum lugar entre a avaliação do raciocínio e do
conhecimento, mas mais próximo do primeiro que do último, como pelo menos uma
pesquisa empírica evidenciou (Brito & cols., 2000). Como já dissemos,
apesar do fato de as questões do ENEM avaliarem conhecimento, elas o avaliam de
maneira diferente das habituais provas tradicionais, privilegiando a
interdisciplinaridade, o uso de situações-problema contextuadas e fornecendo
informações suficientes para que o aluno encontre a solução das questões. Como
os conhecimentos de diferentes áreas devem ser inter-relacionados e aplicados a
situações práticas (semelhante, em certo sentido, à inteligência prática de
Sternberg, Wagner, Williams & Horvat, 1995), os esquemas habituais de
solução de problemas (inteligência cristalizada) passam a não ser
automaticamente suficientes, pois devem ser reorganizados em novas estratégias
de solução (inteligência fluida). Acrescenta-se aí, o fato de que grande parte
das informações são fornecidas nas próprias questões, exigindo a manipulação e
o relacionamento simultâneo de várias informações, que como mostram alguns dos
estudos recentes, é aspecto essencial da inteligência fluida (Engle, Tuholski,
Laughlin & Conway, 1999; Hunt, 1999; Primi, 1998; Primi, no prelo). Mesmo
que o ENEM não tenha sido criado com o objetivo de substituir os vestibulares,
gradualmente, ele vem sendo empregado como parte destes, o que determinará uma
ênfase maior nos processos ligados ao raciocínio, o que caracteriza um aspecto
muito positivo, embora ainda exista necessidade de aprimoramentos.
Um
ponto importante é que a concepção estrutural da inteligência em cinco
competências e 21 habilidades que os autores afirmam representar "as
possibilidades totais da cognição humana na fase de desenvolvimento próprio aos
participantes do ENEM" (INEP, 1999, p.9) não possui a abrangência que seus
autores lhe atribuem. Vale ressaltar que o problema da definição das estruturas
cognitivas constituintes da inteligência, tem sido a grande questão nos últimos
100 anos de inúmeros pesquisadores de pelo menos três abordagens metodológicas
distintas. Embora se possa hipotetizar algumas semelhanças entre o modelo
psicométrico integrado de Carroll (1993) e o modelo da matriz de competências e
habilidades do ENEM (Dominar Linguagens e Compreender Fenômenos, mais próximas
à inteligência cristalizada e as competências; Enfrentar Situações Problema e
Construir Argumentações, mais próximas da inteligência fluida), ela está longe
de representar o amplo espectro das manifestações possíveis da inteligência,
descobertas pelos estudos psicométricos.
Do
ponto de vista operacional, cabe um questionamento, relacionado à composição
dos escores do ENEM, tendo em vista que vários itens contam simultaneamente
para várias competências; o que provoca uma alta correlação entre os escores de
cada competência de tal forma que, em termos práticos, as cinco competências
podem não estar trazendo informações adicionais àquelas obtidas pelo escore
total (soma de pontos em todos os itens de múltipla escolha). Dessa forma, é
difícil sustentar a existência das cinco competências, como componentes
relativamente distintos, e justificar a apresentação de escores separados.
Vê-se também na construção do ENEM, uma sobrevalorização de conceitos teóricos,
evidenciado pela criação das subescalas, baseadas exclusivamente na análise
teórica dos itens e não a partir de uma integração de métodos empíricos e
teóricos, empregados na construção de instrumentos de avaliação que geralmente
utilizam a análise fatorial dos itens para investigar a melhor maneira de
combiná-los para produzir escores distintos (componentes ortogonais).
Um
terceiro e último ponto a ser considerado, neste artigo, refere-se ao uso dos
termos competência e habilidade. Como foi mencionado, esta nomenclatura tem
sido usada por pesquisadores europeus (Perrenoud, 1997) e norte-americanos
(Carroll, 1993), mas o conceito associado aos termos difere para ambos, tendo
em vista que o que os europeus denominam como competência, os norte-americanos
têm denominado como habilidades cognitivas.
No
entanto, analisando-se as definições de competências e habilidades do ENEM,
pode-se perceber que todas se referem ao domínio de determinada operação
cognitiva e não ao potencial para executar a operação, o que seria mais próximo
do conceito de capacidade ou habilidade, no sentido clássico dos termos. Assim,
pode-se observar que tanto as definições das cinco competências, quanto das 21
habilidades referem-se tão somente a competências, isto é, níveis esperados de
realização. Tal fato pode ser ilustrado a partir das definições que tomamos
como exemplo: (a) dominar a norma culta da língua portuguesa (Competência I);
(b) enfrentar situações-problemas (Competência III); (c) comparar processos e
formação socieconômica, relacionando-os com seu contexto histórico (Habilidade
20); (d) dada uma distribuição estatística de variável social, econômica,
física, química, ou biológica, traduzir e interpretar as informações disponíveis,
ou reorganizá-las, objetivando interpolações ou extrapolações (Habilidade 3).
Parece-nos imprescindível reduzir a confusão de nomenclaturas, sendo que uma
sugestão possível seria denominar as cinco competências de 'competências
gerais' e as 21 habilidades de 'competências específicas'.
Entendemos,
no entanto, que os aspectos mais críticos referem-se aos dois primeiros pontos,
que evidenciam a necessidade de estudos que investiguem a validade de construto
do ENEM (American Educational Research Association, American Psychological
Association & National Council on Measurement in Education, 1999), o que
poderia ser feito, por exemplo, por meio da análise fatorial dos itens e de
estudos que correlacionassem o ENEM com outros instrumentos marcadores dos fatores
definidos por Carroll (1993). Com base nas análises por nós efetuadas e em
outros estudos (Brito & cols., 2000) é provável que o ENEM se correlacione
mais com medidas de inteligência fluida do que com inteligência cristalizada,
se comparado com as provas tradicionais centradas no conhecimento.
Tais
estudos seriam muito importantes para compreendermos exatamente quais as
capacidades cognitivas avaliadas pelo ENEM, de forma a se estabelecerem as
relações do conhecimento que vêm sendo descobertas à respeito dos padrões de
desenvolvimento com outras variáveis como a aprendizagem, traços de
personalidade, interesses profissionais, bem como, com os substratos
neuro-fisiológicos da inteligência, podendo integrá-los na interpretação dos
escores deste importante instrumento brasileiro de avaliação.
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