COMIDA
MADE IN BRAZIL: SERÁ?
Fernando
Santiago dos Santos, fernandoss@usp.br
Dezembro de
2006
Comer é um dos grandes prazeres do ser humano. Alguém
vai querer negar a maravilhosa sensação de se estar à mesa, com um bom prato de
comida bem feita, exalando aromas indescritíveis? A comida é, sem sombra de
dúvida, uma arte em suas infinitas combinações de cores, sabores e cheiros.
Talvez uma das mais democráticas, pois pode estar em qualquer lugar.
Nosso país é privilegiado nesta arte. O território, o
clima e as diferenças regionais fazem da nossa culinária um grande ateliê gastronômico,
em que nuanças fantásticas de gosto perfilam na enorme galeria de preferências
nacionais. A miscigenação que transformou nosso povo na maior mistura étnica do
mundo também alcançou a mesa, a partir do século XVI(1): azeites
mediterrâneos amalgamaram-se ao óleo de coco e ao azeite de dendê, ervas finas
e temperos exóticos deram toque especial às raízes e sementes da terra
brasílica, e uma infinidade de frutos, sementes, legumes e hortaliças oriundos
do Velho Mundo mesclaram-se soberbamente às benesses da nossa terra.
Desde seus primeiros contatos com os habitantes
silvícolas do Novo Mundo, os europeus (particularmente portugueses e espanhóis,
no nosso caso) tomaram contato com alimentos muito diferentes daqueles com os quais
estavam acostumados a saborear em suas mesas européias, especialmente os de
origem vegetal. O estranhamento inicial da nova flora é refletido pela maneira
como descreviam as frutas, animais e demais componentes da nossa flora: a
batata, por exemplo, era conhecida como “maçã da terra”, e o tomate, de “maçã
de ouro”(2) (aliás, o tomate é um produto da terra americana que
chegou no continente europeu somente em fins do século XVI. Fico imaginando
como deveria ser a macarronada italiana sem o molho de tomate!). Assim, nesse
ir-e-vir de jesuítas, colonizadores e conquistadores, plantas medicinais e
alimentícias cruzaram o Atlântico em viagens de mão dupla, incrementando as mesas
e sincretizando sabores.
E cá estamos nós, quatrocentos e poucos anos depois
dessas primeiras experiências culinário-culturais. O convite, agora, é para que
façamos uma pequena análise do que geralmente consumidos aqui no Sudeste(3).
Vamos começar com as frutas. Boa parte dos alimentos frugais que geralmente
consumidos não é, definitivamente, nativa do Brasil: pêras, maçãs, uvas,
laranjas, mexericas, bergamotas, mangas, abacaxis, melancias, melões, goiabas, pêssegos,
abacates, limões, nectarinas, figos, morangos, nêsperas, ameixas pretas,
jabuticabas, cocos, bananas... Desta lista, você saberia dizer quantas são
genuinamente brasileiras ou sul-americanas? Apenas as goiabas, as jabuticabas e
os abacates, acredite se quiser. O cardápio de frutas aqui no Sudeste é
majoritariamente europeu (pêras, maçãs, uvas, pêssegos, nectarinas, morangos),
com salpicos de frutas oriundas do Oriente Médio (melões, melancias, mexericas,
limões, laranjas, bergamotas) e da Ásia (mangas, abacaxis, cocos, bananas,
figos, ameixas pretas). É, caro leitor, nem a banana escapou da lista dos
importados! A verdade é que muitas mudas trazidas pelos jesuítas da África,
Europa e Ásia encontraram condições favoráveis para sobrevivência aqui no
Brasil. Algumas tornaram-se espontâneas, portanto muita gente acha que o coco,
a manga e a banana, por exemplo, são frutas tipicamente brasileiras(4).
Se analisarmos o que comemos como “saladas”
(hortaliças, legumes e raízes), a lista dos importados também não é pequena. Pasme:
alface, acelga, rúcula, beterraba, cenoura, agrião, salsa, salsinha, tomilho,
manjericão, manjerona, alecrim, gengibre, nabo, rabanete, chicória não são
nativos do Brasil! Ah, sim, você come inhame, cará e mandioca? Bem, estes são
definitivamente made in Brazil. Também
são americanos (não necessariamente brasileiros) o tomate e a batata (que,
muito indevidamente, foi batizada de “batata-inglesa”... os ingleses nunca
comeram batatas antes do século XVI! Para pensar: como deveria ser a comida
alemã, que atualmente combina batata com praticamente qualquer coisa, há
quinhentos anos? Einsbein(5) com purê de batata não estaria no menu
alemão, certamente...). Cereais? Bem, aqui caímos, então, em um cosmo totalmente
xenófobo: não são do Brasil o trigo, o centeio, o arroz, o milho (apesar de ser
sul-americano), a aveia e o sorgo. Quer arrematar com um bom cafezinho? É, a Coffea arabica, como o próprio nome
indica, não nasceu aqui em terras tupiniquins.
Em plena época natalina, nada mais apropriado que
nozes, avelãs, damascos, uvas-passa... Tudo exótico, importado, para combinar
com Santa Claus, tão genuinamente brasileiro quanto o bacalhau, o salmão e o
peru. Se você quiser optar por uma ceia com produtos brasílicos de origem, pode
incluir açaí, cupuaçu, umbu, cajá e carne de cateto. Todos estes com o selo made in Brazil genuíno. E...
bon apetitte!
Notas:
(1) A vinda dos primeiros
portugueses ao Brasil e, particularmente, a chegada dos jesuítas em meados do
século XVI, foram fatores importantes para o trânsito de alimentos entre Europa,
África e Ásia e o continente americano.
(2) Algumas referências
interessantes a este respeito podem ser encontradas em vários relatos.
Selecionei a seguinte bibliografia: BELTRAN, Maria Helena Roxo. O europeu
diante da Flora do Novo Mundo. In: ALFONSO-GOLDFARB, Ana Maria; MAIA, C. A.
(org.). História da Ciência: o mapa
do conhecimento. Rio de Janeiro/São Paulo: Expressão e Cultura/Edusp, 1995
(Coleção América: Raízes e Trajetórias, vol. 2); CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Lisboa:
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997; DEAN,
Warren. A botânica e a política
imperial: introdução e adaptação de plantas no Brasil colonial e imperial.
São Paulo: IEA/USP, 1992 (Série História das Ideologias e Mentalidades, Coleção
Documentos, vol. 1); FATUMBI, Pierre Verger. Ewé: o uso das plantas na sociedade iorubá. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995; FRAGOSO, J. Discurso
de las cosas aromáticas, árboles y frutales, y de otras muchas medicinas
simples que se traen de la India Oriental, y que sirven al uso de la medicina. Madri:
Francisco Sánchez, 1572; LÉRY, Jean de. Viagem
à terra do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1980; SOUSA,
J. S. de. Tratado descritivo do Brasil
em 1587. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Editora Itatiaia, 2001 (Coleção
Reconquista do Brasil, 2ª série, v. 221); THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às
plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
(3) A região Sudeste foi a
única considerada neste artigo por ser o local de nascimento e habitação do
autor, que não ousaria falar da culinária de outras partes deste imenso país.
(4) Em Botânica, a palavra espontânea designa plantas que,
adaptadas a um ambiente propício e em clima favorável, conseguem desenvolver-se
e crescer de forma natural, embora estas plantas possam ser exóticas (ou seja, não-nativas do
local).
(5) Este é um prato alemão à
base de joelho de porco, normalmente acompanhado de purê de batatas ou grão de
bico.